O Homem Baile

Aqui e agora!

Reformada 20 anos depois, Legião Urbana mantém ao vivo a força de um repertório fadado a superar os limites do tempo. Fotos: Nem Queiroz.

A nova Legião: André Frateschi canta ao lado de Dado Villa-Lobos, com Marcelo Bonfá na bateria

A nova Legião: André Frateschi canta ao lado de Dado Villa-Lobos, com Marcelo Bonfá na bateria

Dado Villa-Lobos e Marcelo Bonfá, o que restou da Legião Urbana, tocando junto com os três Paralamas em pleno palco, já é motivo suficiente para glorificar de joelhos. Uma cena que poderia ser um retrato feito há trinta e poucos anos em um dos prédios da Colina ou na casa da Vovó Ondina, mas está acontecendo bem ali na sua frente, em pleno século 21. É a parte final do show que comemora o aniversário de 30 anos do disco de estreia da Legião, cuja turnê – enfim - passou neste sábado por um Metropolitan lotado, no Rio. Disco que só foi possível porque Herbert Vianna, o paralama antenado, entregou uma fita demo para a gravadora que passou a contar com as duas bandas no elenco. Incrível ver esse filme vivo da história do rock nacional, o que, por si só, já vale o ingresso.

Mas os desafios são muitos para uma banda recém-reformada, e o principal é ver se André Frateschi consegue segurar os vocais, o que de fato acontece. Talvez por isso a turnê teve um bom punhado de shows pelo interior antes de chegar ao Rio, o que e resultou no jeito correto de cantar Renato Russo sem ser Renato Russo e no entrosamento esperados. Por que Frateschi não é nenhum ginasiano, e, cascudo, vai muito bem, com um carimbo de aprovação batido em “Teorema”, uma das mais difíceis de cantar por conta da parte alta no final, ainda no bloco inicial do show. Ele por vezes abusa de uma afetação de ator, ao interpretar versos tintim por tintim, mas se sai muito bem, sobretudo em músicas como “Geração Coca-Cola”, quando se empolga pra valer; no crescente de “Há Tempos”; na vibração de “Por Enquanto”, ressignificada após o estouro de Cássia Eller e que hoje soa como uma despedida do disco e do próprio Renato; e na difícil “Faroeste Cabloco”, entre outras.

Dado Villa-Lobos e Marcelo Bonfá também cantam solo em algumas músicas durante o show

Dado Villa-Lobos e Marcelo Bonfá também cantam solo em algumas músicas durante o show

Não cabem questionamentos voltados para o próprio umbigo do tipo “Legião só com Renato Russo”, mesmo porque o show é o tempo todo um tributo ao próprio Renato e à Legião em si, e ainda ao relacionamento dele com Dado e Bonfá, o que aparece na ótima “Tempo Perdido”, que emociona ao ser precedida por um breve discurso gravado por Renato nos tempos em que o sonho de ter banda começava e virar realidade. Dado e Bonfá estão no comando e se revezam nos vocais em algumas músicas sem comprometer, mas Frateschi, além de ótimo frontman, canta muito melhor que os dois. Como músicos, os dois legionários remanescentes estão muito melhor, e a banda, bem arredondada, toca muito mais pesado do que – pecado mortal admitir – em boa parte de sua carreira original, por assim dizer. É o que se vê, por exemplo, no arremate da linda “Quase Sem Querer”, com Dado solando pra valer; em “O Reggae”, com citação à The Clash, a segunda banda que melhor incorporou o ritmo jamaicano ao rock (Police em primeiro); no peso de “Soldados”, com guitarra-metralhadora e tudo; e na pleonástica perfeição de “Perfeição”, rara composição de Renato Russo.

Desafio também é, com um repertório de tantos sucessos, tocar a íntegra de um único álbum, e com as músicas na ordem em que foram gravadas, uma vez que, em um show, nem sempre funciona da mesma forma. Pense que muitas dessas onze músicas não eram tocadas ao vivo (ou eram pouco tocadas), mesmo na época em que o disco saiu. Por isso nem os legionários conhecem detalhes de faixas como “A Dança”, “Baader-Meinhof Blues” ou “Perdidos no Espaço”, quebrando o clima de karaokê desenfreado, o que é muito bom. O disco, também, é executado no talo, sem um alô por parte dos músicos, reforçando o caráter punk do repertório inicial da Legião, e de certo modo refazendo o apreço da dupla Dado e Bonfá por esse material, desde sempre defenestrado pela banda, por conta da produção oferecida pela gravadora, fato comum com discos de estreia de bandas dos anos 1980. O palco inicialmente escuro, com projeções em preto e branco, contribui para o clima roots/rude.

André Fratesqui canta com a camiseta lançada ao palco pelo público; no fundo o baixista Mauro Berman

André Fratesqui canta com a camiseta lançada ao palco pelo público; no fundo o baixista Mauro Berman

No restante do set list (veja no final do texto) estão quase todas as músicas indispensáveis, mas é notável ausências como “Fábrica”, limada de última hora, “Eduardo e Mônica” e “Quando o Sol Bater na Janela do Teu Quarto”. “Química”, gravada por Legião e Paralamas, poderia ser tocada com as duas bandas no palco, mas aí já é pedir demais em um espetáculo com 2h15 de duração. A parte ruim do show vem quando um bloco com convidados inócuos entram no palco. Dado causa constrangimento ao sequer saber o nome de todos eles, e fica a lição de que se é para dar espaço para novos artistas, que seja em shows de abertura; o repertório da Legião merece ser preservado. A presença dos filhos de Dado e Bonfá também depõe contra eles próprios, ainda que na óbvia (para a situação) “Pais e Filhos”. E não custa lembrar que o filho do principal integrante da Legião é hoje uma mala sem alça que atravanca o progresso. O que não interfere, contudo, na sensacional cantoria comandada por Marcelo Bonfá e com o versátil André Frateschi na bateria.

Nada subtrai a expressão de felicidade de Dado Villa-Lobos, que, assim como Bonfá têm o direito de usufruir de sua própria obra. Outros destaques de uma noite para anotar no caderninho são “Ainda é Cedo”, que fica bem com o gogó de Bonfá e realça o baixo do animado Mauro Berman; a climática “Angra dos Reis”, talvez a que mais sofre modificações para melhor, graças aos generosos teclados de Roberto Pollo; e “Índios”, com os vocais espalhados pelos três e um extraordinário arremate instrumental. Olhando assim, a participação do Paralamas em “Será” (repetida no bis), “Conexão Amazônica” e numa torta “Que País é Esse?” parece só um capricho da história. Mais perto do final do show, Frateschi, já totalmente aceito, veste uma camiseta lançada pela plateia ao palco, e se junta como um deles ao sacar a tirada: “Nós legionários esperamos 20 anos por esse show que está acontecendo aqui e agora!”. Ele tem razão.

O compenetrado Dado, que se emociona e não esconde a felicidade de seguir em frente com a nova Legião

O compenetrado Dado, que se emociona e não esconde a felicidade de seguir em frente com a nova Legião

Set list completo:

1- Será
2- A Dança
3- Petróleo do Futuro
4- Ainda é Cedo
5- Perdidos no Espaço
6- Geração Coca-Cola
7- O Reggae
8- Baader-Meinhof Blues
9- Soldados
10- Teorema
11- Por Enquanto
12- Tempo Perdido
13- Daniel na Cova dos Leões
14- Há Tempos
15- Dezesseis
16- 1965 (Duas Tribos)
17- Eu Sei
18- Pais e Filhos
19- Angra dos Reis
20- O Teatro dos Vampiros
21- Quase Sem Querer
22- Índios
Bis
23- Será
24- Conexão Amazônica
Bis
25- Faroeste Caboclo
26- Perfeição
27- Que País é Esse?

Músicos da reformada Legião Urbana se confraternizam com os Paralamas do Sucesso no final da noite

Músicos da reformada Legião Urbana se confraternizam com os Paralamas do Sucesso no final da noite

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Comentários enviados

Existem 2 comentários nesse texto.
  1. Rafael Moreira em janeiro 24, 2016 às 18:44
    #1

    Parabéns pelo artigo!!!
    Esperando o show deles em Fortaleza.

  2. Alberto Aquino em janeiro 24, 2016 às 21:21
    #2

    Amigo Marcos,
    eu e Raphael Bittencourt ficamos muito emocionados com o show e agora mais ainda com sua monumental avaliação do espetáculo.

    Forte abraço,
    Alberto Aquino.

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