Absoluto
Em espetáculo musical e visual, David Gilmour repassa a carreira e se confirma no posto de um dos melhores guitarristas em todos os tempos. Fotos Divulgação: Camila Cara/MRossi.
Mas momentos são momentos e não é possível não salientar, durante essas três horas de show, o trabalho de Gilmour, sentado como vovô sábio deslizando os dedos sobre uma lap steel guitar em “High Hopes”. A música, do tardio álbum “The Division Bell”, do Pink Floyd, lançado em 1994, bem conhecida do público mais jovem, ganha um inesperado destaque, dado o bom gosto com que o guitarrista colori uma passagem que, em disco, nem tem tanta relevância. Em dado momento, parece que vai faltar corda para as mãos dele deslizar, e o resultado é de uma beleza singular que toca em cheio o fundo da alma. O que torna, de antemão, inviável a execução desse mesmo trecho por um ordinário virtuose. E é por isso que David Gilmour está entre os bambambãs da guitarra desde que o rock foi criado.
Gilmour, contudo, vai longe na hora de revirar o baú e traz “Astronomy Domine”, o single de 1967 que marca a fase psicodélica, ainda com o guitarrista e maluco de pedra Syd Barret. A música revive no telão montado no centro do palco as bolhas coloridas feitas com óleo e água despejados em uma calota de vidro, partindo para um efeito hipnótico sobre a plateia. Em forma de círculo e ladeada por vários spots de luz, a tela não chega a ser novidade, já que era usada pelo Floyd, mas garante grande momentos complementares às músicas, mesmo sem a alta resolução dos nossos tempos. Seja exibindo imagens sem pé nem cabeça típicas do rock progressivo e do próprio Pink Floyd, ou de modo mais agressivo em direção ao público, é parte indispensável na experiência proposta por David Gilmour.Barret, já falecido, foi a inspiração para Gilmour e Roger Waters comporem “Wish You Were Here”, tocada logo no início da primeira parte. A música se transformou, com o passar dos anos, na canção oficial da saudade de alguém, e, na cola do violão dedilhado de Gilmour, é cantada, assoviada e cantarolada em uníssono pelo povaréu. Com um repertório repleto de clássicos – e muita coisa sobra, são mais de 30 anos de banda – o guitarrista insere músicas da carreira solo, sobretudo do disco novo, o apenas razoável “Rattle That Lock” (saiba mais). E o público até que conhece algumas, como o faixa-título, a segunda da noite, na qual Gilmour, como em um toque mágico, descola solos e evoluções de guitarra excepcionais, num aperitivo do que aconteceria depois. Outra é “In Any Tongue”, também salva pelo modo de Gilmour tocar, e “The Girl in the Yellow Dress” fornece um desnecessário sotaque jazzy num show de rock.
É quando o andamento dá uma caída na segunda parte, ainda com “Fat Old Sun”, do álbum “Atom Heart Mother” (era para ser “Summer ’68”!), e “On a Island”, faixa-título do álbum solo anterior, no mesmo bloco. Mesmo assim, David Gilmour enriquece as músicas esmerilhando a guitarra em boas improvisações instrumentais da banda. Nela se destacam o parceiro de última hora Phil Manzanera, em outra guitarra, e o saxofonista brasileiro João Mello, que reforça como a música do Pink Floyd é tão boa que admite com brilhantismo até um dos instrumentos mais chatos de que se tem notícia. Em “Money”, com uma iluminação amarelo outro, o sax é fundamental, e uma improvisação atrasa só para provocar a virada de bateria que dá início ao solo, coisa fina mais uma vez. O baterista Steve DiStanislao vai bem em procedimentos que incluem a adição de um sino de verdade e o kit adaptado para a ótima introdução de “Time”, naturalmente uma das músicas mais esperadas, que abre o bis.Além de dois vocalistas de apoio, quase todos contribuem par encorpar a voz de Gilmour, bastante castigada, diga-se de passagem. Que o diga “Run Like Hell”, que encerra o show, antes do bis, de uma forma absolutamente hipnótica. A música é uma das poucas que ele compôs em “The Wall”, e é surpresa em um repertório que evita na maior parte do tempo a marca registrada de Waters. No fim das contas a comparação é inevitável, e se David Gilmour é um virtuose no estilo único de tocar, canta mais, mesmo com o gogó cansado, e usa e abusa da parte visual, o espetáculo de Roger Waters, centrado em “The Wall” (relembre) é insuperável e incomparável com qualquer outro show de rock feito até então. Nessa briga de cachorro gigante, mesmo com a volta do Pink Floyd descartada dia após dia, quem ganha é o público, que tem à disposição dois espetáculos sensacionais. Não deixe de ir a nenhum deles e seja feliz.

Vista geral da exuberante Allianz Parque, valorizada pelo espetáculo visual do show de David Gilmour
1- 5 A.M.
2- Rattle That Lock
3- Faces of Stone
4- Wish You Were Here
5- A Boat Lies Waiting
6- The Blue
7- Money
8- Us and Them
9- In Any Tongue
10- High Hopes
Intervalo
11- Astronomy Domine
12- Shine On You Crazy Diamond
13- Fat Old Sun
14- On an Island
15- The Girl in the Yellow Dress
16- Today
17- Sorrow
18- Run Like Hell
Bis
19- Time
20- Breathe (Reprise)
21- Comfortably Numb
Tags desse texto: David Gilmour, Pink Floyd