O Homem Baile

Máquina ajustada

Sepultura revê 30 anos de carreira em show com repertório abrangente e que funciona como perfeita engrenagem. Fotos: Felipe Diniz (1, 2, 3 e 4) e Daniel Croce (5).

Paisagem do palco do Sepultura: Paulo Jr., Derrick Green, Andreas Kisser e Eloy Casagrande, no fundo

Paisagem do palco do Sepultura: Paulo Jr., Derrick Green, Andreas Kisser e Eloy Casagrande, no fundo

“Baiotéqui! Baiotéqui! Baiotéqui!”. É o que grita uma ensandecida plateia na beirada do palco do Circo Voador. Está na hora do bis do show do Sepultura nesta sexta (19/6) e os caras querem por que querem a música feita em parceria com o ex-líder dos Dead Kennedys, Jello Biafra. O curioso é que o grupo fez, de antemão, uma promoção na qual os fãs podiam escolher três músicas para o bis, e “Biotech Is Godzilla” não aparece entre as três mais votadas, como lembra um atencioso Andreas Kisser. Mas as surpresas são muitas: é um show especial da banda, que comemora o aniversário de 30 anos, só o bis tem oito músicas, apenas um dos 13 álbuns (”A-Lex”, de 2009) não é contemplado em um repertório que dura cerca de duas horas, e o público carioca – feito de açúcar, segundo consta – vence um toró colossal para se refestelar sob a lona voadora. É ou não é um acontecimento digno de nota?

Em que pesem as mudanças de formação (poucas superam 30 anos de estrada sem altos e baixos), a paisagem do palco é de uma banda com formação entrosada, bem ensaiada e afiadíssima. No Sepultura atual não há preguiça, má forma (física ou mental), despreparo ou falta de atenção em como as músicas são tocadas. A banda funciona como uma engrenagem ajustada na qual peça alguma parece destoar, mesmo considerando um repertório ampliado com músicas que muitos ali estão tocando pela primeira vez na história. Casos de “Necromancer”, içada do split album “Bestial Devastation”, que marcou a estreia lá pelos idos de 1985; “From The Past Comes The Storm”, primeira composição de Kisser no grupo, que abre o disco “Schizophrenia” (1987), o mesmo que Max Cavalera carregou debaixo do braço para os Estados Unidos atrás do primeiro contrato com uma gravadora estrangeira; e até “Orgasmatron”, o cover do Motörhead que, de tão identificado com a fase Max, quase sempre é omitida nos shows. Tá bom pra você?

25 músicas de todos os discos: Andreas Kisser lidera a apresentação matadora do Sepultura

25 músicas de todos os discos: Andreas Kisser lidera a apresentação matadora do Sepultura

A gama de músicas é tão grande que é possível observar, como em uma aula de história, as várias fases pelas quais o som do Sepultura passou. Do thrash metal clássico da já citada “From The Past…”; passando pelo death metal de gravação tosca e inglês macarrônico de “Bestial Devastation”; pelo hino juvenil que é “Inner Sself”, barrada na Rede Globo na época; até chegar ao som de bateria e de guitarra bem próprios do Sepultura, encontrados em “Chaos A.D.” e consolidados no “Roots”, está tudo ali, como um documentário vivo. Mesmo assim, o repertório, como um todo, é apresentado com incrível unidade, com sonoridades atualizadas para os nossos dias e – repita-se- uma precisão técnica assustadora. Aí, destaca-se o baterista prodígio Eloy Casagrande, cuja aceleração desafia os vovôs Andreas Kisser e Paulo Jr. a correrem atrás, e dá tudo certo no fim das contas. É a prova viva de como um integrante mais novo faz uma banda rejuvenescer.

A grandeza da apresentação, com o som no talo e os instrumentos bem equalizados, remete diretamente a shows marcantes que o Sepultura fez no Brasil, quando pela primeira vez um grupo brasileiro atingiu um patamar técnico internacional, nas turnês dos álbuns “Arise” (1991) e “Roots” (1996), que no Rio aconteceram no Canecão e no Imperator (veja como foi), respectivamente. Ou seja, é o Sepultura voltando aos eixos quase 20 anos depois de seu momento mais crítico. Tempo em que, contudo, a coisa não ficou parada. Tanto que músicas da fase com Derrick nos vocais – e não era assim - são muito bem recebidas pelo público brasileiro, talvez o mais exigente na comparação entre os dois frontman. É o que acontece com “Apes Of God”, que não era tocada há um tempão; com “Kairos”, cujo verso/refrão é repetido com vigorosos punhos erguidos ao ar; e “Choke”, a primeira gravação com Derrick, que já tem mais de 15 anos e repete o feito.

Derrick Green no agito: as músicas da fase dele são cantadas pelo público como não se via antes

Derrick Green no agito: as músicas da fase dele são cantadas pelo público como não se via antes

No meio desse espetacular e tão diversificado “conjunto da obra”, há o brilho contemporâneo, não só na pedrada “The Vatican”, do álbum mais recente, “The Mediador…”, mas com a novíssima “Sepultura Under My Skin”. A música, lançada apenas em vinil, mostra um Sepultura solto, exibindo o som de guitarra que Andreas descobriu e com o tempo consagrou, associado ao groove da bateria que Casagrande incorpora com facilidade, muito às custas do discreto, porém eficiente Paulo Jr. Uma boa amostra do que pode vir por aí. Mas o público se acaba mesmo é nos clássicos, em rodas de dança, abertura do Mar Vermelho e em tímidos moshs. É o que acontece, por exemplo, em “Arise”, um espancamento sonoro absurdo; no pula-pula irresistível de “Roots Bloody Roots”, que arremata a noite; na porradaria instantânea de “Polícia” – sim, dos Titãs; na mezzo modificada “Refuse/Resist”; e até na esquisitona “Ratamahatta”.

Ah, e, sim, teve “Biotech Is Godzilla”, que, em princípio, parecia não estar nos planos, com citação de Andreas a uma de suas melhores noites, na Eco 92, nesse mesmo Circo Voador (saiba mais). Na ocasião, com a casa abarrotada por conta da entrada franca, ele e Iggor Cavalera se juntaram a integrantes do Ratos de Porão e ao próprio Jello Biafra para tocar a música. Um mosh de Biafra sobre o povão o fez voltar ao palco quase sem roupa. Talvez seja essa memória, presente também na cabeça do público, que faz o pedido ecoar mais forte e ser generosamente atendido. Depois de quase duas horas de paulada na moleira, numa espécie de exibição de como se constrói uma história dentro do metal sem fronteiras do Sepultura, fica a convicção de que se trata de um show para ser gravado e assistido diariamente nos próximos 30 anos. Por hora, não deixe de ir por nada desse mundo.

Andreas inflama o público no Circo, que se acaba nas diversas rodas de dança, em todas as modalidades

Andreas inflama o público no Circo, que se acaba nas diversas rodas de dança, em todas as modalidades

Set list completo:
1- The Vatican
2- Kairos
3- Propaganda
4- Inner Self
5- Breed Apart
6- Dead Embryonic Cells
7- Choke
8- Convicted in Life
9- Attitude
10- Troops of Doom
11- Sepulnation
12- From the Past Comes the Storms
13- Territory
14- Polícia
15- Orgasmatron
16- Arise
17- Refuse/Resist
Bis
18- Bestial Devastation
19- Apes of God
20- Necromancer
21- Cut-Throat
22- Sepultura Under My Skin
23- Biotech Is Godzilla
24- Ratamahatta
25- Roots Bloody Roots
A agressividade segue garantida no Sepultura, reforçada pela entrada do batera Eloy Casagrande

A agressividade segue garantida no Sepultura, reforçada pela entrada do batera Eloy Casagrande

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