Duro recomeço
Autoramas estreia nova formação em bom show no Circo Voador, mas desentrosamento é latente; Boogarins e Lê Almeida flertam com o prog rock, cada um à sua maneira. Fotos: Marcos Hermes.
Senão, vejamos. Por vezes, parece que cada um – Gabriel Thomaz, Fred Raimundo e Érika Martins, pela ordem – está tocando em uma banda diferente e são todos colados ali, ao vivo, por uma espécie de photoshop da vida real. A espevitada Érika precisa descobrir, como o baixista Melvin já faz há muito tempo, o desfrute dos prazeres da coadjuvação. Ela não tem mais o papel de crooner e não precisa, por exemplo, ter uma coreografia individual para cada música. Pode até, se for o caso, deixar o palco em uma música ou outra; nenhum problema. Fred Raimundo, um dos maiores bateristas que o hardcore já viu, tem a mão pesada demais e toca seco, reto, subtraindo do Autoramas o groove do som garageiro/retrô/new wave que lhe é característico. Precisa ser esperto para dosar melhor o braço e afrouxar a coisa, no melhor dos sentidos.
Em tese, até porque Érika se vira com guitarras e um tecladinho supimpa, o som tende a ficar mais pesado – o que é bom -, mas nem sempre é isso que uma banda precisa, muito menos aquela que tem uma sonoridade tão peculiar quanto o Autoramas. Em “Música de Amor” a coisa funciona: a canção fofa se converte em música esporrenta das boas. Mas não é o que acontece o tempo todo. A experiência de cada um com seus respectivos serviços prestados ao rock nacional pode aparentar que é só começar a tocar que a coisa flui, mas é preciso escapar de tal armadilha. Convém ter paciência (“Paciência! Paciência!”) e percepção para lidar com esse recomeço e apostar na sensibilidade para ajustar muito, a custa de muito ensaio e, sobretudo, muito palco. A rapadura é doce, mas não é mole, não.Ocorre que em todos esses anos o Autoramas coleciona um punhado de hits que, reunidos, têm a capacidade de divertir o mais incrédulo dos cidadãos. E olha que o grupo nem pode tocar tanto assim, por causa das outras duas bandas da noite. “Você Sabe”, que traz à reboque um dos melhores riffs do rock nacional, funciona muito bem, mais pesada e urgente; “Abstrai”, outra rara composição, recebe o teclado de Érika que antes, com a formação anterior, lhe era sonegado; “Fale Mal De Mim” mantém, depois de tanto tempo, a força de um hit radiofônico; a já citada “Paciência” tem Érika coverizando com precisão a inesquecível baixista Simone, que se acaba na plateia junto com outro autorama original, o batera André Nervoso; e a desenterrada “Catchy Chorus” faz a festa no meio do público, pequeno, mas interessado e conhecedor dos intestinos autorâmicos. Faltou “Carinha Triste”, mas sabemos que nem tudo pode ser perfeito, nem tudo pode ser bacana.
Entre as novidades, duas amostras. A cadenciada e bela “Verão”, de forte inspiração na jovem guarda, já liberada na web, e a oitentista “Sua Vinda Até Aqui”, do EP gravado por Erika e Gabriel com produção de Lê Almeida, lançado no ano passado, mas que sumiu do mapa. O próprio Lê participa da música, já no bis, junto com “Be My Baby”, o cover das Ronettes que o Autoramas tocava muito na época pré-disco de estreia. Resta saber o porquê do envolvimento do guitarrista, de relevância duvidosa, com o agora quarteto e suas ramificações nos últimos tempos. As duas músicas devem entrar no novo álbum, “O Futuro dos Autoramas”, uma vez que a meta financeira foi atingida em um site de projetos de crowdfunding. Já para a meta artística, resta um pouco mais de tempo de ensaio e de palco, e um bom produtor para auxiliar e evitar uma recorrente colcha de retalhos.Lê Almeida e Boogarins também fazem das suas, aproveitando a – sempre é bom ressaltar – boa estrutura do Circo Voador. Lê, cuja banda mergulha fundo num “indie roots anos 90”, agora se presta a investir em longas passagens instrumentais repletas de guitarras com muitas distorções, num flerte com o rock progressivo. Só a primeira música, a suspeita já no título “Fuck The New School”, tem uns 10 minutos de duração, uma delícia para os ouvidos mais estragados. O problema é que nem sempre as melodias ajudam, e aí tudo vira um coletivo de solos, e o show se resume basicamente em duas partes: as músicas, mais curtas e urgentes, e os solos viajantes e não menos atraentes. Para a primeira parte, é preciso a banda arrumar um vocalista – Lê canta mal pacas -, e, a segunda, é deixar fluir para ver no que vai dar. Não pára, não.
Os goianos do Boogarins, sensação indie extramuros que adora passear no exterior, vai fundo numa psicodelia setentista/sessentista insuspeita, com uma pitada de Júpiter Maçã e também forte identificação com o rock progressivo; quem diria, dois numa noite só! O grupo, dado o atraso no início e o fato de ter tocado depois do Autoramas, perde boa parte do público, mas o couro come mesmo assim. As melhores partes são – de novo – os solos do vocalista Dinho Almeida e de Benke Ferraz, que também têm muito a evoluir. As músicas, na verdade, são quase o contrário: solos sobre solos com algum riff, melodia e refrão. E isso é muito bom. Ainda mais depois da entrada do extraordinário baterista Ynaiã Benthroldo, que, elegantemente trajado com grife - segundo consta - patrocinada pelo aparelhamento FDE, muitas vezes centraliza as atenções e reforça o longo caminho que o grupo ainda tem para crescer musicalmente. Nem o céu é o limite.Set list completo Autoramas:
1- Resta Um
2- Mundo Moderno
3- Nada a Ver
4- Abstrai
5- Couldn’t Care at All
6- Música de Amor
7- Kung Fu
8- A História da Vida de Cada Um
9- Verão
10- Você Sabe
11- Paciência
12- 1,2,3,4
13- Jogos Olímpicos
14- Fale Mal de Mim
15- Catchy Chorus
Bis
16- A Sua Vinda Até Aqui
17- Be My Baby
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