O Homem Baile

Duro recomeço

Autoramas estreia nova formação em bom show no Circo Voador, mas desentrosamento é latente; Boogarins e Lê Almeida flertam com o prog rock, cada um à sua maneira. Fotos: Marcos Hermes.

RRRRRock: Gabriel Thomaz prossegue liderando e agitando o Autoramas em mais uma nova fase

RRRRRock: Gabriel Thomaz prossegue liderando e agitando o Autoramas em mais uma nova fase

A ocasião sugere perfeição: uma mini edição do festival goiano Bananada, que inesperadamente volta à cena abarrotado de patrocínios, em pleno Circo Voador, templo do rock no Rio de Janeiro. Com o Boogarins e Lê Almeida no elenco, o Autoramas tem tudo para mostrar a força da formação de superbanda – mais que em outras fases – em que grupo se tornou. Olhando assim, parece que é só juntar os amigos, tocar um belo repertório que a coisa flui. Mas não, não é desse jeito que a banda toca, e o agora quarteto, embora apoiado por um público dos mais fiéis, se vê em apuros. Ou, por outra, parece não perceber, mas ainda há muito que fazer para essa nova etapa dar realmente certo.

Senão, vejamos. Por vezes, parece que cada um – Gabriel Thomaz, Fred Raimundo e Érika Martins, pela ordem – está tocando em uma banda diferente e são todos colados ali, ao vivo, por uma espécie de photoshop da vida real. A espevitada Érika precisa descobrir, como o baixista Melvin já faz há muito tempo, o desfrute dos prazeres da coadjuvação. Ela não tem mais o papel de crooner e não precisa, por exemplo, ter uma coreografia individual para cada música. Pode até, se for o caso, deixar o palco em uma música ou outra; nenhum problema. Fred Raimundo, um dos maiores bateristas que o hardcore já viu, tem a mão pesada demais e toca seco, reto, subtraindo do Autoramas o groove do som garageiro/retrô/new wave que lhe é característico. Precisa ser esperto para dosar melhor o braço e afrouxar a coisa, no melhor dos sentidos.

Autoramas versão quarteto: Fred Raimundo, Érika Martins, Gabriel Thomaz e Melvin Ribeiro

Autoramas versão quarteto: Fred Raimundo, Érika Martins, Gabriel Thomaz e Melvin Ribeiro

Em tese, até porque Érika se vira com guitarras e um tecladinho supimpa, o som tende a ficar mais pesado – o que é bom -, mas nem sempre é isso que uma banda precisa, muito menos aquela que tem uma sonoridade tão peculiar quanto o Autoramas. Em “Música de Amor” a coisa funciona: a canção fofa se converte em música esporrenta das boas. Mas não é o que acontece o tempo todo. A experiência de cada um com seus respectivos serviços prestados ao rock nacional pode aparentar que é só começar a tocar que a coisa flui, mas é preciso escapar de tal armadilha. Convém ter paciência (“Paciência! Paciência!”) e percepção para lidar com esse recomeço e apostar na sensibilidade para ajustar muito, a custa de muito ensaio e, sobretudo, muito palco. A rapadura é doce, mas não é mole, não.

Ocorre que em todos esses anos o Autoramas coleciona um punhado de hits que, reunidos, têm a capacidade de divertir o mais incrédulo dos cidadãos. E olha que o grupo nem pode tocar tanto assim, por causa das outras duas bandas da noite. “Você Sabe”, que traz à reboque um dos melhores riffs do rock nacional, funciona muito bem, mais pesada e urgente; “Abstrai”, outra rara composição, recebe o teclado de Érika que antes, com a formação anterior, lhe era sonegado; “Fale Mal De Mim” mantém, depois de tanto tempo, a força de um hit radiofônico; a já citada “Paciência” tem Érika coverizando com precisão a inesquecível baixista Simone, que se acaba na plateia junto com outro autorama original, o batera André Nervoso; e a desenterrada “Catchy Chorus” faz a festa no meio do público, pequeno, mas interessado e conhecedor dos intestinos autorâmicos. Faltou “Carinha Triste”, mas sabemos que nem tudo pode ser perfeito, nem tudo pode ser bacana.

Érika, à esquerda, também contribui com o peso ao tocar guitarra em algumas músicas do repertório

Érika, à esquerda, também contribui com o peso ao tocar guitarra em algumas músicas do repertório

Entre as novidades, duas amostras. A cadenciada e bela “Verão”, de forte inspiração na jovem guarda, já liberada na web, e a oitentista “Sua Vinda Até Aqui”, do EP gravado por Erika e Gabriel com produção de Lê Almeida, lançado no ano passado, mas que sumiu do mapa. O próprio Lê participa da música, já no bis, junto com “Be My Baby”, o cover das Ronettes que o Autoramas tocava muito na época pré-disco de estreia. Resta saber o porquê do envolvimento do guitarrista, de relevância duvidosa, com o agora quarteto e suas ramificações nos últimos tempos. As duas músicas devem entrar no novo álbum, “O Futuro dos Autoramas”, uma vez que a meta financeira foi atingida em um site de projetos de crowdfunding. Já para a meta artística, resta um pouco mais de tempo de ensaio e de palco, e um bom produtor para auxiliar e evitar uma recorrente colcha de retalhos.

Lê Almeida e Boogarins também fazem das suas, aproveitando a – sempre é bom ressaltar – boa estrutura do Circo Voador. Lê, cuja banda mergulha fundo num “indie roots anos 90”, agora se presta a investir em longas passagens instrumentais repletas de guitarras com muitas distorções, num flerte com o rock progressivo. Só a primeira música, a suspeita já no título “Fuck The New School”, tem uns 10 minutos de duração, uma delícia para os ouvidos mais estragados. O problema é que nem sempre as melodias ajudam, e aí tudo vira um coletivo de solos, e o show se resume basicamente em duas partes: as músicas, mais curtas e urgentes, e os solos viajantes e não menos atraentes. Para a primeira parte, é preciso a banda arrumar um vocalista – Lê canta mal pacas -, e, a segunda, é deixar fluir para ver no que vai dar. Não pára, não.

Psicodelia pura: Boogarins desfilando a sucessão de solos que às vezes se parecem com canções

Psicodelia pura: Boogarins desfilando a sucessão de solos que às vezes se parecem com canções

Os goianos do Boogarins, sensação indie extramuros que adora passear no exterior, vai fundo numa psicodelia setentista/sessentista insuspeita, com uma pitada de Júpiter Maçã e também forte identificação com o rock progressivo; quem diria, dois numa noite só! O grupo, dado o atraso no início e o fato de ter tocado depois do Autoramas, perde boa parte do público, mas o couro come mesmo assim. As melhores partes são – de novo – os solos do vocalista Dinho Almeida e de Benke Ferraz, que também têm muito a evoluir. As músicas, na verdade, são quase o contrário: solos sobre solos com algum riff, melodia e refrão. E isso é muito bom. Ainda mais depois da entrada do extraordinário baterista Ynaiã Benthroldo, que, elegantemente trajado com grife - segundo consta - patrocinada pelo aparelhamento FDE, muitas vezes centraliza as atenções e reforça o longo caminho que o grupo ainda tem para crescer musicalmente. Nem o céu é o limite.

Set list completo Autoramas:

1- Resta Um
2- Mundo Moderno
3- Nada a Ver
4- Abstrai
5- Couldn’t Care at All
6- Música de Amor
7- Kung Fu
8- A História da Vida de Cada Um
9- Verão
10- Você Sabe
11- Paciência
12- 1,2,3,4
13- Jogos Olímpicos
14- Fale Mal de Mim
15- Catchy Chorus
Bis
16- A Sua Vinda Até Aqui
17- Be My Baby

Do indie roots anos 90 ao progressivo: Lê Almeida e sua banda, na abertura da noite no Circo Voador

Do indie roots anos 90 ao progressivo: Lê Almeida e sua banda, na abertura da noite no Circo Voador

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