No Mundo do Rock

Ardido, nervoso, crítico

Titãs volta a investir na simplicidade de outros tempos em álbum que resgata a fúria por vezes deixada de lado em trabalhos mais recentes. Fotos: Marcos Hermes/Divulgação (1 e 3) e Reprodução clipe (2).

Titãs: Tony Bellotto (guitarra), Branco Mello (baixo), Sérgio Britto (teclados) e Paulo Miklos (guitarra)

Titãs: Tony Bellotto (guitarra), Branco Mello (baixo), Sérgio Britto (teclados) e Paulo Miklos (guitarra)

Chegou uma hora em que o Titãs decidiu que precisava fazer um disco essencialmente de rock. Não que o grupo, com mais de três décadas nas costas, tivesse abandonado o gênero que o revelou no boom dos anos 80, mas faltava algo mais enfático, um contexto de rock “ardido, nervoso, crítico”. Foi desse jeito que os quatro integrantes remanescentes da formação original (que era um octeto) partiram para o estúdio, de onde saíram com o álbum “Nheengatu” debaixo do braço (resenha aqui). Lançado em maio, o disco de nome esquisito logo caiu no gosto dos fãs.

Contribuiu para o processo a turnê feita como comemoração de aniversário do álbum “Cabeça Dinossauro”, quando todas as músicas foram tocadas nos shows, num set list mais pesado que o normal (veja como foi no Rio). Lançado em 1986, o disco é o trabalho mais emblemático do grupo e marcou a guinada de uma sonoridade pop para um furioso punk rock à brasileira. Ao mesmo tempo, as músicas novas eram testadas em shows menores em São Paulo, quando o repertório foi basicamente fechado, antes de o grupo convocar o produtor Rafael Ramos (Pitty, Capital Inicial) e assinar um contrato – outro – com uma nova gravadora.

Em “Nheengatu” (nome dado a uma língua indígena ancestral), a ideia é “organizar a bagunça” representada pela Torre de Babel que ilustra a capa. Isso com o uso do que o tecladista/baixista Sérgio Britto chama de vocabulário dos Titãs, que inclui a estética das imagens e tipos de letras, riffs e backing vocals. Ele próprio é que nos contou essa história, em uma entrevista exclusiva, por telefone. O papo destrincha como o disco foi concebido; a boa repercussão entre os fãs mais chegados e a intenção de tocar o material novo, de cabo a rabo, durante a turnê que começa pelo Circo Voador, no Rio, no próximo dia 23. Dá uma olhada aí:

Rock em Geral: O quanto a turnê de aniversário do disco “Cabeça Dinossauro” influenciou na composição do novo álbum?

Sérgio Britto: Pouco. Eu não sei se foi totalmente determinante porque era o que nós já queríamos fazer. Mas eu acho que nos fez tomar a consciência de que certas soluções musicais muito simples funcionam bem no tipo de música que costumamos fazer, e ver como aquilo é uma identidade nossa. Então acho que nesse sentido tocar todo o repertório do “Cabeça…”, tudo que conseguimos fazer ali, também a história de cada música ter a sua própria identidade, apesar de uma unidade sonora, isso foi muito bom.

REG: As músicas desse disco foram todas compostas há pouco tempo? Vocês chegaram a fazer uns shows tocando só músicas novas, em São Paulo, em 2012. Elas são desse período?

Sérgio: Tem 10 músicas dessa fase que ficaram e entraram no disco, então é tudo recente. Desde que voltamos a focar nesse projeto de músicas inéditas, tem umas cinco, seis que nós descartamos pelo meio do caminho. Mas nos propomos a fazer esse processo, experimentando as músicas no palco e até fazer o show com o núcleo que achamos que era significativo antes de partir para gravar o disco.

REG: Funcionou o processo, vocês optaram por aquelas que o pessoal gostou mais?

Sérgio: Não só o que o pessoal gostou, mas o que nós gostamos. Esse feedback dos fãs é importante, até porque às vezes tem coisa que você não quer enxergar. Foi bacana, hoje em dia isso é muito fácil, você toca no show, o cara comenta, tem uma resposta quase que imediata, então ajudou, sim. Fomos descartando coisas que não estavam funcionando nem para nós nem para os fãs, e ficamos com o que estava funcionando bem.

REG: Esse disco é o mais rock, o mais direto do Titãs em muitos anos. Era uma premissa fazer um disco assim antes de começar a compor?

Sérgio: Era uma premissa porque eu acho que o que nós temos feito através dos anos, mesmo nesses discos de que falam tão mal, sempre têm uma dose de coisas que até poderiam estar nesse disco, acho que são coisas boas e até que são nervosas. Nunca deixamos de fazer isso (rock), mas parece que as pessoas simplesmente não enxergam, então decidimos que íamos focar nisso, até porque quando você se foca e se impõe certas balizas estéticas, rende mais naqueles limites. Então foi algo de caso pensado o que planejamos fazer, nós trabalhamos para isso.

REG: Ou seja, experimentar demais pode não dar certo…

Sérgio: Dar tiro para tudo quanto é lado às vezes pode ser ruim, (focar é bom) para que ninguém se disperse, gaste energia e não consiga bons resultados. Mas nem sempre, acho que nós mesmos já fizemos disco com músicas uma com uma cara, outra com outra. Mas é difícil.

REG: De que forma a produção de Rafael Ramos contribuiu para isso?

Sérgio: Sem demérito nenhum ao Rafa, nós já tínhamos decidido fazer assim, estávamos com o repertório praticamente feito. Quando o chamamos já tínhamos tudo e apresentamos as músicas que iríamos gravar, aquilo não estava mais em questão. Mas o que ele contribuiu foi exatamente em fazer tudo ficar do jeito que tinha que ser no disco, o que também é uma ciência, é o trabalho do produtor. Que eu lembre, todos os nossos trabalhos, embora insistam em achar que não é assim, foram feitos desse jeito, sempre tomamos conta dessa parte do repertório e do que queríamos fazer. Os produtores sempre ajudaram a realizar aquilo da melhor maneira possível, mas ninguém interferiu no que tínhamos que fazer. Nos bons e nos maus momentos, diga-se de passagem. E o Rafa contribuiu muito, de procurar a sonoridade mais adequada para o que estávamos fazendo, nos instigar para fazer quase tudo ao vivo, quase como se fosse uma captação de um show. Uma energia boa, sempre estimulando para não perdermos a adrenalina que o rock tem que ter, na hora de gravar. E acho que o resultado foi melhor impossível. Foi uma parceria muito boa, e ele é um cara fácil de lidar, figuraça, gente finíssima.

REG: Então teve muita coisa gravada ao vivo…

Sérgio: Fazíamos take de tudo, com bateria ao vivo, nós tocando todo mundo junto e cantando inclusive. Fomos fazendo os overdubs, é um pouco inevitável não fazer assim. Uma ou outra coisa ficou de baixo ou guitarra desse primeiro take, mas muito no espirito de não “protoolszar” nada, de não passar nada por auto-tune, evitar esses truques tecnológicos que têm deixado a música mais fria. Isso foi uma coisa bacana de ter feito, conseguir tudo na raça, que é o que passa no disco.

REG: Em que medida as manifestações de junho do ano passado contribuíram esse disco?

Sérgio: Acho que em uma música claramente…

REG: “Fardado”…

Sérgio: É, o “Fardado”. Do resto muitas das músicas já estavam feitas antes de isso acontecer e são assuntos que são recorrentes no Brasil, não precisa esperar muito, na semana que vem você vai ter um monte de novidades, velhas novidades. Mas o “Fardado” foi diretamente inspirado nisso e gerou alguma polêmica, por incrível que pareça…

REG: Ainda?

Sérgio: Pois é, mas o assunto é bem esse, de uma policia despreparada para lidar com essas novas questões que uma democracia em desenvolvimento ainda coloca, fora outras tantas. Mas nesse caso especifico, nós mesmos, como cidadãos, não estamos acostumados a ver a polícia como servidor público e a cobrar a polícia e a segurança pública da maneira certa. O policial não está acostumado a se ver dessa maneira e a exigir seus direitos porque tem certos empecilhos. A questão é que a música fala sobre cidadania, mais do que especificamente sobre polícia ou segurança pública.

REG: Mesmo assim ela já tá sendo apelidada de “Polícia 2”…

Sérgio: É, trata do mesmo assunto, mas tem um enfoque diferente, não acho que estamos repetindo o assunto, não. Tudo isso que eu te falei a música “Polícia” não trata: a questão do policial, dos direitos, das condições de trabalhar. O que tem em comum nas duas músicas é essa história de, resumidamente, polícia para quem precisa. O cidadão trabalhador e honesto ser reprimido, vítima de brutalidade por um órgão do estado, subsidiado por ele mesmo é um paradoxo absurdo.

REG: Essa música saiu de um cartaz…

Sérgio: Foi num cartaz, porque esse bordão, “fardado, você também é explorado”, é antigo, com algumas variantes, é usado há muito tempo em manifestações. Mas o que me chamou a atenção essa foto foi uma menina muito nova, meio frágil, com uma florzinha na orelha segurando esse cartaz na frente de uma tropa de choque super armada com aqueles cassetetes. É emblemático. É quase que um pedido de diálogo eu achei bacana o contraste daquela delicadeza com aquela truculência.

REG: De novo as flores contra os canhões…

Sérgio: É exatamente isso, flores contra os canhões.

Palhacos do inferno: o quarteto em close com o figurino e as maguiagens usadas no clipe de 'Fardado'

Palhacos do inferno: o quarteto em close com o figurino e as maguiagens usadas no clipe de 'Fardado'

REG: No clipe dessa música vocês usam uma maquiagem e roupas com cores fortes, tem um quê de Slipknot?

Sérgio: Tem inspiração em várias coisas do rock, mais teatrais. O Slipknot talvez seja o mais recente, mas desde o Alice Cooper, Kiss, tem outros tantos, ou mesmo mais recentemente Marilyn Manson. Acho que é um recurso de você fazer algo com um efeito teatral. Causa um impacto, a letra pede e nós quisemos fugir do óbvio, que era colocar cenas de policiais e fazer essa coisa de jornalismo denúncia. Queríamos fazer um clipe forte, mas fugir dessa linha, ter um pouco mais de originalidade. E também esse tipo de coisa nós nunca fizemos, aparecer em público maquiado, e deu um resultado bacana. E tem esse subtexto de estarmos vestidos de palhaços do inferno, mas como as pessoas se vestem de palhaço nas manifestações e tudo o mais.

REG: O título do disco, por ele não ter um significado óbvio, direto, tem a ver com o título do “Õ Blésq Blom” (disco dos Titãs de 1898)?

Sérgio: Poderia ter, pela sonoridade, por ser uma coisa que ninguém sabe direito o que significa. Tem a ver, por um lado. Mas nesse caso é uma palavra conhecida, que existe no dicionário. “Nheengatu” é uma língua que ainda se fala em algumas regiões do Brasil, que foi forjada por jesuítas. É um idioma que existe e nós fomos chegando nele, não conhecíamos essa palavra. Fomos vendo a história de a capa ser a Torre de Babel, do desentendimento, e como essa língua promove um entendimento, ficou parecendo que as duas coisas juntas davam uma leitura forte, no sentido de falar: “tá uma bagunça isso aqui e nós precisamos nos entender”.

REG: A capa também tem a ver com o “Cabeça…”, por ser uma imagem já conhecida…

Sérgio: Tem coisas que – assim, como é que eu vou falar? - são parte do nosso vocabulário, tanto no que diz respeito a estética das imagens que nós usamos, tipo de letras, tipo de riff que nós fazemos, tipo de backing vocal… São marcas estéticas que eu acho que nós não devemos desprezar, especialmente quando elas estão a serviço de alguma coisa. Essa imagem não tá ali de graça, ela representa muito bem o conteúdo do disco. Depois de 32 anos de carreira, é inevitável isso (autorreferência), mas quando acontece de uma maneira forte, com sentido, é bem-vindo, tem um efeito bom.

REG: Das 14 músicas, só duas, “República dos Bananas” e “Chegada ao Brasil (Terra a Vista)” não foram compostas só pela banda, e as duas falam do Brasil… Bem, tudo fala do Brasil no disco…

Sérgio: Tudo fala do Brasil, tem coisas que são questões mais amplas, como a pedofilia, mas todos esses assuntos fazem parte, quase todos, do nosso dia a dia, infelizmente. E essas duas são parcerias do Branco (Mello, baixista) com pessoas ligadas ao teatro e que ele apresentou e achamos que tinha ver com o repertório do disco, nesse sentido da temática mesmo. Essa coisa da chegada ao Brasil, essa letra toda irônica do Brasil em construção, de uma maneira ácida e divertida. E a letra do Angeli (cartunista) também, da “República dos Bananas”, com esses personagens tão brasileiros. O Angeli tem tudo a ver com a nossa história e essas músicas entram como uma luva. Apesar de não serem 100% nossas, casaram muito bem.

REG: E por que colocar “Canalha”, que é um clássico?

Sérgio: Nós queríamos colocar uma coisa que não fosse nossa para temperar o repertório e eu lembrei dessa música do Walter Franco, que é um cara que nós gostamos muito e que também tem alguns pontos de intercessão com o nosso trabalho: essa poética econômica, a ligação com poesia concreta. Fazia sentido. Eu lembrei dessa música porque ela tem esse riff que é quase de metal, né?

REG: É o rock no Brasil quando o Brasil não tinha muito rock…

Sérgio: É uma mistura de mpb com rock e eu sempre pensei esse riff como se fosse um Black Sabbath brasileiro, quando fala “canalha!”.

REG: Vocês foram perdendo integrantes por um ou outro motivo e hoje a banda é praticamente um quarteto. Virou uma bandinha de garagem de novo?

Sérgio: Sempre fomos e nunca conseguimos disfarçar direito. Mesmo com oito caras acho que éramos assim, nosso forte sempre foi esse. Acho que nós produzimos melhor assim, dentro desse formato, coeso, mais direto. Óbvio que ficar fazendo a mesma coisa durante 32 anos nem sempre você vai fazer da melhor maneira, vai ficar repetitivo, então tentamos nos reinventar. Nem sempre com sucesso, mas tentamos. Acho que nesse formato nós funcionamos bem, é fácil pra gente. Não no sentido de que não dê trabalho, mas é gostoso trabalhar assim.

REG: Às vezes simplificar também é bom…

Sérgio: Exatamente, e não é fácil. Às vezes para se chegar a uma solução simples, tem que dar muita volta.

REG: Daqui a umas semanas vocês voltam a tocar no Circo Voador, onde o DVD “Cabeça Dinossauro” foi gravado. Qual é a expectativa para esse show?

Sérgio: Espero que seja pelo menos bom (risos), mas vai ser diferente porque o repertório do “Cabeça…”, embora seja um disco muito antigo, é um clássico, então as pessoas que vão ver o show conhecem todas aquelas músicas e no primeiro acorde todo mundo já sai pulando. Nesse caso é diferente porque nós pretendemos tocar muitas músicas do Nheengatu”…

REG: Tipo quantas?

Sérgio: No mínimo de oito a 10, mas vamos vai deixar todas na mão, se formos realmente aclamados, tocamos o disco inteiro. Eu tenho visto esse feedback de fãs, que não é exatamente um termômetro fiel do que vai ocorrer no show, mas alguma coisa ele indica. Muita gente tem pedido que a gente toque o disco inteiro, muita gente gostou desse disco, entre o nosso público mais fiel. Então acho que faz sentido nós tocarmos muitas músicas dele. Antes de fazer a turnê já estamos tocando quatro, mesmo em shows em festival, não vai ser um problema.

REG: Então não começou ainda a turnê do disco?

Sérgio: O lançamento oficial da turnê do disco é esse show do Circo. Estamos bolando um cenário novo, tem algumas surpresinhas que eu não vou poder te falar, mas vamos dar uma caprichada nisso, estamos bolando umas coisas para que o show tenha uma identidade visual para o público, é uma deferência que temos que ter com quem paga ingresso.

REG: Mais alguma coisa do show que você queira entregar?

Sérgio: O set list vai ter umas surpresas, alguns lados B que vamos ressuscitar, mas focando nessa coisa mais nervosa e mais rock’n’roll do nosso repertório.

REG: O Titãs tem circulado bastante de gravadora em gravadora nos últimos tempos. É o que dá pra fazer nesses tempos, contratos curtos?

Sérgio: É, mas isso foi fruto de uma circunstância. Nós tínhamos um contrato com a Abril Music, que foi vendida para a BMG, que foi vendida para a Sony e nós fomos juntos, ainda no mesmo contrato. Depois, sim, nós saímos e licenciamos um disco com a Universal, o “Sacos Plásticos” (resenha aqui) e o “Cabeça…” ao vivo produzimos sozinhos. Agora resolvemos, por vários motivos, principalmente porque somos uma banda antiga, que é uma boa ideia ter um contrato com uma gravadora novamente, para nos ajudar a fazer as coisas acontecerem. Fizemos um contrato de três anos com a Som Livre e até agora as coisas estão indo muito bem. Para começar eles ficaram entusiasmados com a ideia de o disco ser desse jeito. Isso foi um excelente começo, porque hoje em dia as gravadoras estão arriscando muito pouco. Eu espero que isso signifique que eles estão apostando que as coisas mudam também, que pode ser que tenha mais espaço para esse tipo de musica, que anda tão restrita a guetos. Um rock mais ardido, mais nervoso, mais crítico.

REG: Tá mais difícil ter banda de rock hoje do que quando vocês começaram?

Sérgio: Muito mais. A possibilidade de uma banda nova, com um trabalho que não seja previsível, tocar em rádio e se apresentar na TV aberta… Óbvio que tem essas outras válvulas que não existiam e que compensam, mas compensam pouco. As pessoas falam muito da internet, mas o retorno que ela dá não é tão grande, na verdade. É uma ferramenta que eu espero que ganhe mais força para que esse caminho valha a pena.

Os quatro titãs em posição de descansar no estúdio em que o pesado álbum 'Nheengatu' foi gravado

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