O Homem Baile

Proporções bíblicas

Liderado por Robert Smith, The Cure cumpre a promessa, faz show longo e tira atraso de 17 anos dos fãs mais e menos fanáticos. Fotos: Patrick Rocha/Divulgação (1) e Daniel Croce (2, 3 e 4).

Robert Smith, o eterno super herói do rock, no comando do The Cure: promessa cumprida em noite épica

Robert Smith, o eterno super herói do rock, no comando do The Cure: promessa cumprida em noite épica

Já faltava tinta na caneta para anotar o nome das músicas quando Robert Smith começou a mostrar sinais de cansaço, numa versão mais lenta de “Boys Don’t Cry”. Mas ele estava lá liderando o The Cure e cumprindo a promessa - e como Bob falou à imprensa brasileira - de tocar um set longo e cheio de músicas: redondas 40 canções em três horas e 20 minutos. E olha que foi pouco, se consideramos a lista original fornecida pela produção, com sete músicas a mais, e a compreensível tolerância com o terrível trânsito do Rio para a HSBC Arena, que atrasou o início em meia hora. Definitivamente um show para iniciados, mas que os não acostumados com os 37 anos dessa lenda viva do rock também podem curtir, embora muitos tenham saído antes do fim.

O concentrado guitarrista Reeves Gabrels

O concentrado guitarrista Reeves Gabrels

Isso porque logo na primeira parte já aparecem hits do naipe de “In Between Days”, do bombado álbum “The Head Om The Door”, obrigatório na época em que o rock dava as cartas por aqui, na mídia e nas pistas. Mas o quesito rock pra dançar, Bob Smith, que não é bobo, deixaria para o último bis, avaliando a resistência dois fãs e a sua própria. Pode até não parecer, mas há conceitos fornecidos numa noite como essa, aqui e acolá. Por mais que os músicos pareçam combinar quase tudo ali no palco, não é por acaso que a noite começa com “Open” e termina com “End”, muito menos a alternância entre momentos alegrinhos, do tipo “Friday, I’m In Love”, que todo mundo adora, com outros soturnos ao extremo, como em “One Hundred Years”, cujas imagens no telão só ampliavam a mais profunda tristeza. A música do Cure - se você não se deu conta - é para tocar as profundezas da alma. E o grupo ainda teve a ousadia de tocar quase a íntegra do álbum “Disintegration” (sete de 10 músicas, num bis só para ele, com três), um dos discos mais tristes e sombrios de que se tem notícia.

A banda passa a maior parte do tempo paradona no palco, e são as dancinhas do desengonçado Robert Smith que chamam a atenção em algumas músicas. Ele reclama de ter demorado 17 anos para voltar ao Brasil e de não ter aprendido português, mas sabe que carisma é muito mais do que ler frases feitas em um pedaço de papel ou ficar dizendo “oi, tudo bem” com sotaque carregado. No caso do Cure, a música é hipnótica e prende o público por si só, sem pataquadas afins. E quem está no palco é Robert Smith, um dos nossos super heróis mais emblemáticos, do tempo em que, para se subir em um palco, não podia ser com qualquer roupa do cotidiano, era preciso um personagem. Tanto que Bob encarna seu alter ego, há 37 anos, dentro e fora do palco. Um personagem que atravessa gerações incólume, jamais envelhece e ainda faz dos quilinhos a mais que carrega desde a juventude um plus inerente ao conjunto da obra. Robert Smith permanece sendo o ursinho de pelúcia em carne, osso e vida própria que o mundo do rock eterniza dia após dia.

A clássica cabeleira desgrenhada de Bob Smith

A clássica cabeleira desgrenhada de Bob Smith

Há muitas maneiras de se encarar um show como esse do Cure - pense bem -, são 40 músicas! Em “Trust”, por exemplo, lá pela metade, a sequência das músicas sugere um reinício, e “Want”, logo nem seguida, com um crescente instrumental que beira o dramático, só não representa o ápice da melancolia porque Bob Smith sempre se supera nos extremos e coloca a cabeça do público em parafuso. “Shake Dog Shake”, por sua vez, é tão espessa e arrastada, até explodir no refrão, que desfaz o mito e converte bandas de doom, black, gothic e o caralho a quatro metal em anjinhos que desceram do céu. Bob Smith e o Cure chegam muito mais perto e mais profundamente aos males do ser humano do que todos eles reunidos num palco de festival nos cafundós da Alemanha. Na inesperada “From the Edge of the Deep Green Sea”, o clima profundo é enfatizado por efeitos que reproduzem a imagem da banda no telão ao infinito, num tom azulado de arrepiar, que traria ainda mais melancolia ao set. Toda a produção de palco, com canhões de luz laterais e no fundo, são de um simplicidade atroz e funcionam que é uma beleza.

Bem misturado, com direito a celebrities de plantão, o púbico é unânime e vibra até nas músicas com longas passagens instrumentais, como a de “Push”, em que a primeira parte da letra é antecipada no gogó. A banda é ok, tem bons baterista e baixista, com destaque para o guitarrista Reeves Gabrels, cedido por David Bowie. Ele investe mais em texturas e climas, como pede o som do Cure, mas tem performances arrojadas em músicas como “End”, do martelante verso/refrão “Stop loving me”, e especialmente no final destrambelhado de “Wrong Number”, num show à parte. Mas é no bisão final, com 10 músicas que o bicho pega, numa pista de dança gigante só com hits, desde a fase pós punk clássica (”The Caterpilar”, Let’s Go to Bed”) até o flerte com o funk rock de “Why Can’t I Be You?”. Um show de proporções bíblicas para ser recordado e repassado pelos séculos e séculos. Amém, Robert Smith. Amém.

Robert Smith também faz das suas com a guitarra

Robert Smith também faz das suas com a guitarra

Set list completo

1- Open
2- High
3- The End of the World
4- Lovesong
5- Push
6- In Between Days
7- Just Like Heaven
8- From the Edge of the Deep Green Sea
9- Pictures of You
10- Lullaby
11- Fascination Street
12- Sleep When I’m Dead
13- Play for Today
14- A Forest
15- Bananafishbones
16- Shake Dog Shake
17- Charlotte Sometimes
18- The Walk
19- Mint Car
20- Friday I’m in Love
21- Doing the Unstuck
22- Trust
23- Want
24- The Hungry Ghost
25- Wrong Number
26- One Hundred Years
27- End
Bis
28- Plainsong
29- Prayers for Rain
30- Disintegration
Bis
31- Dressing Up
32- The Lovecats
33- The Caterpillar
34- Close to Me
35- Hot Hot Hot!!!
36- Let’s Go to Bed
37- Why Can’t I Be You?
38- Boys Don’t Cry
39- 10:15 Saturday Night
40- Killing an Arab

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Comentários enviados

Existem 5 comentários nesse texto.
  1. Marina Moura Navarro em abril 5, 2013 às 15:22
    #1

    Exatamente o que pensei. Retornei no tempo, um tempo em que minha descomplicada vida era diferenciada por gostar tanto dessa banda. Uma suburbana típica passou a estudar inglês, o Reino Unido, sua geografia, política e cultura, conhecer um mundo novo musical através desses grandes músicos. Também levaram-me à uma surdez, mas diante das abomináveis coisas que ouvimos no dia-a-dia, acho que tive sorte de ter tido uma adolescência com o Cure amparando toda a minha dramaticidade. Abraço, grande texto.

  2. Maurício Porão em abril 5, 2013 às 16:52
    #2

    Eu também estive no show ontem no Rio, Bragatto! Confesso que a parte mais dançante com clássicos de pistas eu dispensaria. Curto a parte Cure mais “noiada” mesmo! Mas seu texto sobre o show sublinha de forma tão magnífica a celebração curemaníaca de ontem que passo, agora, depois de ter lido, até bem mais do que logo após o show, a ter curtido o mesmo muito mais!

    Belas palavras!

    Porão
    http://www.olhares.com/porao

  3. Eduardo Tristis em abril 5, 2013 às 17:20
    #3

    Foi uma noite memorável. Em um dos melhores dias da minha vida, senti arrepios na espinha, foi uma volta ao passado e uma nostalgia de tempos que não vivi infelizmente, sou de uma época errada, mas sinto como se os anos 80 estivesse na minha pele. A apresentação do Cure foi algo lendário para mim e nunca me esquecerei desta noite, não mudaria nada!

  4. Samuel em abril 8, 2013 às 15:45
    #4

    Grande Bragatto!

    Sabe quando a gente vai num parque de diversões, num brinquedo radical? Nunca lembramos muito do que acontece quando a gente está lá, de ponta cabeça, ou girando rápido, ou chacoalhando… O mesmo quando damos um mergulho em mar aberto, ou um primeiro beijo naquela garota de quem você tanto gosta e que te fez perder noites de sono imaginando como seria? Como que numa brincadeira irônica, o que fica na memória são aquelas imagens dissipadas, meio borradas e a sensação é de sonho, às vezes deja vu. Presenciar um show do Cure ao vivo é mais ou menos como isso. É um evento tão rico em imagens, em cores, luzes, névoas, em poesias estranhas, em memorias e sensações… e claro, também sons dissonantes, psicodélicos, distorcidos, graves, agudos e médios voando no ar e chegando em nossos incautos e pobres ouvidos e cérebro e… coração… Todas timbragens perfeitas dos instrumentos, que são tratados com respeito e carinho. Aí, tudo muda a cada 3, 5, 6, 15 minutos, assim, de repente… Você mal saboreou o último prato, você mal assimilou o que sentiu, o que viu, e Robert Smith e Cia já lhe entregam outra enxurrada de sensações. Claro que cada um tem seus motivos íntimos em gostar de The Cure. Também cada um curtiu o show como lhe convém. E TODOS estão certos. Da minha parte, posso dizer que tomei uma SURRA. Era muita coisa para ver, ouvir, sentir, lembrar, assimilar. Era um prato novo, filme novo, um atrás do outro. Over and over and over. Saí extasiado e arrebentado. Fisicamente e emocionalmente. O Cure em disco é sublime na produção e dispensa comentários. Mas é AO VIVO que eles mostram a que vieram. Tudo é mais pesado, mais PRESENTE, mais respirável, tátil, saboroso e temperado. Tudo isso não foi da noite para o dia. São 36 anos de banda e muito trabalho. Muitas idas e vindas. Aprenderam a trabalhar os instrumentos, a usar os pedais certos no palco, a cantar melhor, equipamentos ideais… também descobriram o que vale e o que não vale a pena em fazer parte do famigerado “showbusiness” e tiveram a sabedoria e humanidade de se manterem íntegros e afastados de toda megalomania e falsidade do meio. Não são celebridades ocas, são artistas dignos da palavra. Malucos gênios que deram certo. Para felicidade da arte e seus apreciadores.

    Tanta coisa acumulada só podiam resultar numa coisa: Uma banda perfeita, com um repertório perfeito, carisma perfeito e entrega total. Melhor ainda, comunhão total!

    Sabe… ás vezes penso no tamanho do mundo. Imaginando ver esse pequeno globo azul do céu, da lua e imagino quantas e quantas pessoas pisaram nesse chão desde tempos remotos. Pensadores, políticos, assassinos, tiranos, reis, escritores, pintores… E quantas ofereceram à humanidade, músicas simples e poderosamente íntimas e emocionais como essas banda? E todos sabemos, tocar profundamente nossos sentimentos, sejam eles alegres ou sombrios, nos faz nos conhecer melhor. O The Cure conseguiu isso. Por eles e por nós. Afinal, somos fãs disso. Tentamos compreender isso. Nos torna mais próximos de algo divino e por consequência, pessoas melhores. Eu acredito nisso.

    Os comentários dos amigos pós show, até um dia depois, dois dias depois mostram bem isso: - “Meu, tomamos uma surra de The Cure!” - “Parece que foi um sonho” - “Parece que ainda estou sonhando” - “Melhor banda do mundo!” - “Esse show mudou minha vida!” - “Estou hipnotizado até agora!” e muitas outras… o que me faz pensar que nossos sentidos não estão tão acostumados com isso. Que precisamos conviver mais vezes com experiências como essa. Enfim, palavras não conseguem expressar com precisão. E nem precisa. Foi histórico e acachapante. Visceral e catártico! Além de uma aula de mestre para quem aspira ser um artista. Talvez seja por isso também que eles adiam sua aposentadoria. Ainda há o que se passar pra frente. E sempre haverá.

  5. Paca em abril 15, 2013 às 2:51
    #5

    O show foi foda de bom!
    Mas não faltou um pouquinho de potência no baixo?

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