Fazendo História

Vida longa ao Garage

Meca do underground carioca completa dez anos. Matéria publicada na Rock Press 22, de novembro de 1999. Foto: Marcos Bragatto

exodus98Localizado na Praça da Bandeira, o Garage fez fama nesta década por revelar os nomes da nova safra do rock carioca, além de se tornar parada obrigatória para bandas de outros estados e até para grupos com certa projeção, que fazem questão de ter no currículo uma passagem por essa verdadeira lenda viva do underground.

A pacata Rua Ceará, durante a semana, é um local de pequeno e tradicional comércio, com moradores de antigas casas que remetem à época do Império. Mal iluminada, à noite é um local aparentemente sinistro (a rua passa por cima de um canal e por baixo dos trilhos da ferrovia), mas tão tranquilo que nunca se teve notícia de ocorrência policial na região. Seguindo o exemplo, o Garage é o único lugar no mundo que não tem seguranças e raramente sente-se falta deles.

Quando Fábio Costa chegou ao Garage, em 1989, e começou a passar vídeos de rock, com ênfase no heavy metal, jamais poderia pensar que faria história no rock nacional, resistindo aos altos e baixos de todos os seus segmentos e sustentando uma cena nem sempre tão forte, muito menos lucrativa para quem se propõe a investir no meio. Hans Júnior era o dono da casa, que se chamava Garage Art Cult, antes de Fábio chegar. Ele negociou o espaço junto ao Moto Clube do Brasil, que funciona durante a semana no subsolo, e parte da arrecadação é repassada para os proprietários.

Fábio, além de ser torneiro mecânico, tinha experiência com uma equipe de rock, daquelas que fazia som mecânico na década de 1970. Ele ainda havia trabalhado com o Raul, outro pioneiro do underground carioca, no Caverna I, em São João de Meriti, e também no Caverna II, em Botafogo, ao lado do Canecão. Depois de dois anos ele convenceu o sócio a produzir shows no local, mesmo sem grana alguma para investir.

O primeiro show aconteceu com Endoparasites e Anschluss, em setembro de 1992, sobre o palco que existe até hoje. O detalhe é que a madeira usada na construção foi comprada com um cheque pré-datado, e o dinheiro para cobrir o borrachudo sai da bilheteria dos primeiros shows.

Mesmo com uma trajetória de sucesso, Hans Júnior deixou o clube em 1992, após problemas com o show do Kreator, que teve produção do Garage, mas acabou rolando na antiga quadra da Estácio de Sá, por questões de espaço. A partir daí começou um verdadeiro entra e sai de sócios, permanecendo somente Fábio, até os dias de hoje.

No início, dado o boom do heavy metal no Brasil, que levou a reboque o Sepultura (que nunca tocou no Garage, diga-se) ao sucesso internacional, era esse o estilo predominante no Garage, com casa cheia todo final de semana. Pode-se considerar essa fase, entre 1993 e1994, como o auge, sendo shows de bandas como Korzus, The Mist e Angra os mais concorridos.

Em 1994, o clube tentou decolar o próprio selo, que chegou a lançar a coletânea “Garage Voices”, com Freaks?, Unmasked Brains, Scars Souls e Go Ahead!. Perdido na transição entre vinil e CD, e com a tradicional falta de verbas, o Garage Records acabou não indo adiante.

Como nada dura para sempre, o metal deixou de ser o estilo predominante no mercado, e o Garage passou a abrir espaço para todas as novas bandas do novo rock brasileiro, versão anos 90. Ao mesmo tempo, com a falta de espaço para shows de médio porte no Rio de Janeiro, os produtores passaram a ver no Garage uma opção também para eventos internacionais. O primeiro foi o Buzzcocks, que teve grande repercussão na mídia (veja foto aqui e aqui). Depois viriam DRI (fotos aqui e aqui), Madball , por duas vezes, Exodus (na foto, no show de 1998, ainda com Paul Baloff nos vocais), Seaweed, Varukers, Agnostic Front e Earth Crises.

Em 1995, o então prefeito César Maia “desapropriou” as casas que compunham a Vila Mimosa, tradicional prostíbulo que funcionava junto à Praça Onze, onde hoje há um projeto para a construção de um grande centro de comunicações, e alojou as meninas de vida fácil nos arredores da Rua Ceará. Esse fato acabou trazendo um movimento maior para a região, entre táxis transportando clientes e policiais que sempre rodam locais desse tipo.

Em 1997, o clube Balaios, também com sede na Rua Ceará, e composto por motoqueiros e suas envenenadas Harley Davidson, inaugurou o bar Heavy Duty, que, com temática típica de motocicletas, roupas de couro e muito heavy metal rolando, passou a atrair grande número de frequentadores. Somando a isso os vários bares pé-sujos que já funcionavam no local, estava criado o Baixo Ceará. Mesmo atraindo um movimento muito maior, esse público não frequentaria o Garage, é não é raro de se ter shows com lotação média e a rua lotada, sobretudo aos sábados.

Nos tempos das vacas magras, o Garage já esteve para fechar várias vezes, e Fábio Gordo, como é conhecido, buscou as saídas mais criativas e inusitadas. A mais comum foi organizar os chamados “SOS Garage”, reunindo bandas com razoável apelo de público, que doam a bilheteria pra o pagamento das dívidas.

Numa dessas crises, porém, no ano passado, Fábio acabou repassando a casa para um novo sócio que transformaria o local numa casa de forró, aproveitando certo frisson sustentado pelas academias de dança da classe média carioca. A casa chegou a ser reformada, ganhou um novo bar e um mezanino, além de uma pintura típica, com sertanejos e caatingas espalhadas pelas paredes. Com duas semanas de eventos fracassados, o clube voltou para a mão de Fábio, e sob a marca Novo Garage, voltou com força total.

Só que o contrato do imóvel ficou assinado entre o tal produtor e o Moto Clube, cabendo à Fábio Costa repassar parte da arrecadação dos shows. Como a bilheteria do Garage não tem sido generosa, mais uma vez há a ameaça de fechamento, estando a situação nas mãos dos advogados, sem previsão para se resolver, considerando a rapidez da justiça brasileira.

Caso não consiga a posse da casa, Fábio prevê duas possibilidades. Uma é o Garage virar uma boate de strip-tease ou coisa parecida, uma vez que duas cafetinas da Vila Mimosa já andaram sondando o local. A outra é o pessoal dos Balaios estender para o local o público de seu concorrido bar, mantendo a casa de shows.

O mais impressionante é que, mesmo depois de dez anos de serviços prestados ao rock, à música e à cultura brasileira, e ao público jovem de uma forma geral, o Garage está mais uma vez ameaçado de fechar, sem que nenhuma perspectiva pareça viável. Já não era hora de se fazer alguma coisa?

O Garage em fatos e números

Início, só com vídeo: final de 1988
Primeiro show do Garage: 4/9/1992, com Endoparasites e Anschluss
Bandas: mais de 1000
Shows: mais de 4 mil
Shows oficialmente mais cheios (público): Korzus, Angra e Planet Hemp com Black Alien
Show mais cheio (bandas): mais de 20, em 6/9/1993, no aniversário; não dava para entrar, até a rua estava lotada
Banda que mais tocou: Cabeça, “umas 30 vezes”, segundo Fábio.
Demos e discos recebidos: 2 mil
Preço atual do ingresso: R$ 5
Endereço: Rua Ceará, 154 – Praça da Bandeira – Tel.: 21 2254 1325

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