O Homem Baile

Do povo

Morrissey sente o calor do público carioca, alfineta monarquia e revê carreira em show lotado, ontem, na Fundição Progresso. Fotos: Luciano Oliveira.

Mais à vontade do que estava há 12 anos, Morrissey esbanja simpatia e é cortejado por animada plateia

Mais à vontade do que estava há 12 anos, Morrissey esbanja simpatia e é cortejado por animada plateia

Suando em bicas, o britânico – jamais Sir – Steven Patrick Morrissey tira a camisa encharcada, a gira sobre a cabeça e lança bem no meio da plateia. Os integrantes da banda de apoio estão todos seminus, tocando com sungas amarelas compradas às pressas na Citycol, e um deles aparece travestido de drag queen, complementando a paisagem “sauna gay” do palco. A cena acontece durante a música “Let Me Kiss You”, já na terceira parte do show de ontem, na Fundição Progresso, no Rio, e o público – cerca de cinco mil fãs de longa data e idade avançada – se estapeia por um pedaço da blusa. Um “acariocado” Morrissey estava de volta à cidade, 12 anos depois.

O movimento das sombrancelhas dramáticas

O movimento das sombrancelhas dramáticas

E muito diferente. O cantor não é mais aquele carrancudo que mal agradecia as flores que lhe eram jogadas no palco em 2000. Ensaia uns “obrigado” em bom português e aperta a mão de tudo o que é fã, na fila do gargarejo. Livre de rancores, já revive canções dos Smiths sem maiores problemas e até recria em cimas delas, numa atitude deveras ousada, em se tratando de regiões pouco frequentadas por ele como o Brasil. Morrissey, também, não depende delas para levantar o público, o que se nota na extraordinária reação em “Every Day Is Like Sunday”, enfatizada pelas luzes rebatidas em espelhos do fundo do palco. O hit, um dos primeiros de sua carreira solo, simplesmente sufocou “Still Ill”, a primeira música dos Smiths tocada na noite, imediatamente antes. Nem a perfeição no decalque na simplérrima (porém única) guitarra de Johnny Marr salvou o hino oitentista.

Embora Morrissey e os Smiths tenham origem no pós punk, o show é pesado em quase todo o tempo, deixando e lado as texturas e climas que marcaram o período. Os guitarristas Boz Boorer (o tal travestido) e Jesse Tobias tocam pra valer, não poupam peso e ainda são ajudados pelo tecladista Gustavo Manzur, que, por vezes, assume uma terceira guitarra. Em músicas como “I Will See You In Far Off Places”, de sotaque árabe, e na bobinha “You’re The One For Me, Fatty”, a pressão é latente, em que pese o baterista Matt Walker ser um verdadeiro animal. De certa forma alheio a isso tudo, Morrissey faz um sutil contraponto, mantendo os nuances e falsetes de uma voz que parece nunca se esgotar, e com expressões faciais dignas dos velhos cantores de ópera. Num misto de cinismo e sentimento, as sobrancelhas grossas do dito “maior inglês vivo” se movimentam e permeiam a apresentação com grande dramaticidade, sobretudo em baladaças como “I Know It’s Over”, num dos momentos mais cafonas da noite, antes do lançamento da tal camisa. Não tem mímica: Morrissey interpreta cada música de verdade num show de rock de verdade.

Morrissey lança o cabo do microfone para cima

Morrissey lança o cabo do microfone para cima

A parte principal da noite acontece na versão densa, pesada e arrastada de “Meat Is Murder”, quando o show ganha ares de ópera rock, ajudado pelo do kit de bateria que inclui gongo (usado várias vezes) e um tamborzão daqueles de recitais eruditos. Em vez de mostrar massacres de guerra como faz o “argentino” Roger Waters, no espetáculo “The Wall”, Morrissey, vegetariano convicto, exibe no telão imagens de extremo mau gosto, nas quais animais sofrem todo o tipo de violência por parte dos humanos. Não precisava ser deveras panfletário, mas o público, talvez identificado com o cantor, aplaude várias vezes durante a música. A mesma precisão instrumental não pode ser percebida em “There’s a Light That Never Goes Out”, reinterpretada com andamento mais lento, de modo a trazer certa nostalgia de Johnny Marr, que, junto com Morrissey, pretendia “salvar o pop” naqueles tempos. O público outra vez não está nem aí e se deleita num outro grande momento da noite. É a prova cabal de que a boa canção pop resiste não só ao tempo, mas também a todo tipo de versões e reinterpretações.

Antes de “Meet Is Murder”, Morrissey ainda teve tempo de provocar o Príncipe Harry, herdeiro do trono britânico, que está no Rio. “Ele veio para tomar o dinheiro de vocês. Por favor, não dêem a ele”, pediu o cantor, notório opositor da monarquia em seu País. No final da noite, músicas dos Smiths são tocadas juntas com outras do disco mais recente, “Years Of Refusal”, numa síntese do Morrissey de hoje, que soube pescar uma música ou outra de quase todos os seus discos solo. “How Soon Is Now” venceu com uma versão “mais surf” do que a original, e o bis, com “One Day Goodbye Will Be Farewell” (esperamos que não) caiu muito bem, muito embora Morrissey bem que poderia ter enfileirado mais umas duas ou três no repertório, que – diga-se – foi o mesmo do show de Belo Horizonte, na quarta passada. Amanhã é a e de São Paulo, com transmissão via web; saiba mais aqui.

Morrissey continua sendo 'o maior inglês vivo'?

Morrissey continua sendo 'o maior inglês vivo'?

Set list completo

1- First Of The Gang To Die
2- You Have Killed Me
3- Black Cloud
4- When Last I Spoke To Carol
5- Alma Matters
6- Still Ill
7- Everyday Is Like Sunday
8- Speedway
9- You’re The One For Me, Fatty
10- I Will See You In Far Off Places
11- Meat Is Murder
12- Ouija Board, Ouija Board
13- I Know It’s Over
14- Let Me Kiss You
15- There Is A Light That Never Goes Out
16- I’m Throwing My Arms Around Paris
17- Please, Please, Please Let Me Get What I Want
18- How Soon Is Now?
Bis
19- One Day Goodbye Will Be Farewell

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