Fazendo História

Playback é crime na China

Cantar em cima de base pré-gravada, com músicos simulando desempenho ao vivo, é prática agora considerada propaganda enganosa no país mais populoso do mundo. Publicado na Outracoisa 19, de março de 2007.

chacrinhaNada mais tradicional para o brasileiro comum do que assistir a um desses programas de auditório dominicais na TV em que artistas se apresentam dublando sua própria música. Mas cuidado que isso pode virar caso de polícia, se a produção não permitir que os artistas se apresentem ao vivo, tocando e cantando de verdade. Aquilo que se convencionou chamar de playback - que o Aurélio define como “processo de sonorização que utiliza gravação prévia de trilha sonora” - agora é crime contra o consumidor, passível de punição pelos órgãos governamentais. Mas isso na China, não no Brasil.

Lá, um movimento chamado “Live Vocals” convenceu o Comitê Permanente do Congresso Nacional do Povo a aprovar uma lei - em vigor desde setembro de 2005 – proibindo o playback. Políticos chineses consideraram que simular o cantar ou tocar um instrumento é propaganda enganosa e fere os direitos do cidadão. “A portaria, outorgada pelo Conselho do Estado da China, estipula que qualquer artista que usa playback no espetáculo ao vivo será advertido. O mesmo acontecerá com a instituição que apóia o artista que use este artifício”, conta o Conselheiro Cultural da Embaixada da China no Brasil, Shu Jianping. A pena é a perda da licença para realizar eventos ao vivo, tanto para o artista como para a entidade, que pode ser desde veículos de comunicação até casas de espetáculos. “Para mim esta portaria se refere mais a cantores do que instrumentistas”, ressalva o diplomata. Ou seja, dublou, enganou, cassa-se a licença. Simples assim.

Artifício consagrado para emissoras de TV, no Brasil o playback sempre causou polêmica. São famosas as histórias de artistas que, em determinado momento da carreira, se recusaram a tocar sem plugar os instrumentos e, ainda, com aquela caixa e prato que deixam qualquer baterista com cara de bobo. Na década de 80 o Ira!, por exemplo, se recusou a tocar no “Programa do Chacrinha”, uma das grandes vitrines para as novas bandas do emergente rock nacional. E a coisa não ficava restrita à TV. Para participar da festa em que o Velho Guerreiro (como Chacrinha também era conhecido), era preciso correr o circuito de bailes do subúrbio carioca. Fazendo playback, claro.

Uma das bandas que toparam a empreitada foi o Barão Vermelho, e Roberto Frejat lembra muito bem de como isso acontecia. “Era uma coisa direta, a música tava tocando no rádio e precisava de espaço na televisão. Ele propunha que fizéssemos um número de programas e na contrapartida fazíamos alguns shows de playback no subúrbio”, relembra, “mas existia todo um circuito no subúrbio para esse tipo de coisa, era a única maneira de conseguir tocar para a população de fora da Zona Sul”, completa. A banda fazia três shows por noite, mas há relatos de outros artistas, caso do Titãs, por exemplo, que chegava a fazer o dobro. Para isso, se dividiam em duas bandas! Frejat não via no artifício algo de tão ruim, mas um procedimento consagrado pelo mercado musical da época. “Ninguém ia aos shows para ouvir a música, mas para ver o artista. A relação do público com o artista era de vê-lo pessoalmente, não de ouvir a música dele. Essa era a função do playback para a periferia do Rio de Janeiro”, ameniza. Mas que as condições de trabalho eram ruins, isso eram… “Os equipamentos eram caóticos, a agulha da vitrola pulava, a fita começava a dar problema de rotação, o gravador tinha o cabeçote sujo, entrava aquele som totalmente abafado”, lamenta Frejat.

Curiosamente, Marcelo Lobatto, empresário na área musical há muitos anos, concluiu a mesma coisa numa passagem envolvendo o próprio Barão Vermelho, já na década de 90. Ele produzia em Duque de Caxias, no Grande Rio, um evento periódico em playback, e, encafifado com a baixa qualidade do espetáculo, decidiu mudar. “Chegamos a conclusão que as pessoas iam ao show de playback porque elas não conheciam o show ao vivo, e decidimos fazer ao vivo para começar a mudar essa cultura”, declara. “Resolvemos levar o Barão, que era tido como maior show na época, ao vivo, só que com mais despesa o ingresso custou três vezes mais. Na hora em que a gente chegou lá, o lugar tava com 300 pessoas do lado de dentro e umas 1200 do lado de fora. As pessoas são tão carentes que queriam ver, pegar o artista, elas se sentem privilegiadas ao ver o artista no bairro delas”, conclui.

Lição aprendia, hoje proprietário da Na Moral Produções, que administra as carreiras de Pitty e Marcelo D2, entre outros, Lobatto simplesmente não permite que seus pupilos toquem playback. Nem mesmo em programas de TV. “Em 12 anos da produtora nenhum artista meu faz playback, já parte de mim. O Faustão já nem chama pra fazer porque sabe que não rola”, argumenta, se referindo justamente ao criador do bordão “Quem sabe faz ao vivo”. Com esse critério ele aproveita e evita, de antemão, os programas que considera ruins para a divulgação dos seus artistas. “Eu digo que não faço playback e já elimino 80 por cento dessas porcarias, sem ter que ser sincero e falar mal do programa”, crava, sem meias palavras.

Só que playback, na TV, mais que uma questão estética, pode ser de praticidade e orçamento. E não como simples propaganda enganosa como avaliaram os chineses. “Usar playback é uma questão de economia. Até nos shows alguns empresários pedem para o artista colocar menos músicos no palco, para economizar nas passagens, hospedagens, iluminação, amplificadores, etc”, acredita o Diretor Musical da Rede Record, Márcio Antonucci, que garante que os programas “Tudo é possível” (apresentado por Eliana), “Show do Tom” (Tom Cavalcante) e “Hoje em dia” (Ana, Edu & Brito) só mostram atrações tocando ao vivo. “Nos demais colocamos pelo menos os cantores ao vivo, fazemos o possível para ninguém dublar por que fica muito fake”, conclui. Roberto Frejat sabe que, ás vezes, dada a precariedade da produção de cada programa ou emissora, o playback pode até cair bem. “Na TV tem um sentido prático, até porque muitas vezes não conseguimos equipamento suficiente para fazer música ao vivo, e aí é melhor fazer playback”, avalia. “Mas existem programas com som ao vivo, como os do Serginho Groisman (“Altas horas”) e do Jô Soares (“Programado Jô”) que são muito legais de fazer, e que são ao vivo”, lembra. Lobatto concorda. “Tem uns que logo de cara eu topo porque sei que são programas legais, tipo um Serginho Groisman, é sempre um prazer, rende boas entrevistas dentro do universo da música pop. Agora, se for programa nada a ver com o segmento, tipo o do Raul Gil, lá eu não vou”, jura o empresário.

Mas Lobatto é um homem de sorte. Por opção artística ou predileção pessoal, soube escolher com que artistas trabalhar. Se ele tivesse no elenco da Na Moral gente como o Dominó, Paquitas, Gretchen e adjacências, aí a história seria outra. “Às vezes fazemos playback por exigência das produções”, garante Márcio Antonucci, “tem artista que não se garante ou que acha que o técnico da TV não vai conseguir tirar o som que ele quer, e prefere dublar, porque existem os ‘performers’ que não sabem cantar, mas fazem uma aeróbica danada no palco, e nem por isso deixam de ser artistas”. Foi pensando nessa fatia do mercado que Frejat condenou com veemência a lei que vigora na China. Apesar de não gostar nem um pouco do expediente e de não tocar dessa forma, nem com sua banda solo, nem com o Barão, desde 1987, o guitarrista avalia que a repressão é um exagero. “O cara cantou antes de gravar, então ele não deixa de ser cantor”, argumenta. “Dentro dessa coisa de televisão tem artistas que não funcionam como artista de show ao vivo, o habitat dele é exatamente um auditório de programas de televisão com playback, você vai matar ele no ambiente dele? Eu acho que isso é um facismo por parte de outros artistas, não me agrada nada”, sacramenta, sem deixar de frisar que “em termos de música os chineses estão no século passado”.

E se esse tipo de lei entrasse em vigor no Brasil, será que a coisa funcionaria? O nível das apresentações e dos artistas iria mudar, com vislumbrou Marcelo Lobatto? E as emissoras de TV, estariam estruturadas para só fazer apresentações ao vivo? Perguntas que só a prática poderia responder, mas que já causam estranhamento no meio. A assessoria de imprensa da Rede Globo, por exemplo, se esquivou desta reportagem alegando, num primeiro momento, que o assunto não era próprio, e, depois, que todos os diretores musicais estavam em férias. O experiente Márcio Antonucci, de seu lado, deu logo uma geral: “O custo nem deve ser o maior problema. A Record tem um teatro com condição e equipamento para que um grupo médio se apresente. O Teatro da Band também é ótimo, haja vista que a banda que anima o programa do Gilberto Barros toca ao vivo. No SBT a mesma coisa, e na Globo também, todas essas emissoras têm equipamento e pessoal pra colocar qualquer artista e seus músicos no ar”.

Resolvida a questão técnica, o que pega é a artística, e aí Frejat não dá mole. Para ele, o Brasil não é a China, e não se resolve uma questão cultural transformando-a em um caso de polícia. “No Brasil isso seria péssimo, porque o público sabe que aquilo ali é dublado, ele tá ali pra ver o cara. A deformação é do público, que tem uma relação diferenciada com o artista, e não é o Estado que vai conseguir corrigir isso. Só o público tem o direito de tirar, basta não assistir”, prega, ao mesmo tempo em que sugere uma alternativa: “poderia ser efetivada a produção de programas ao vivo, o que é saudável, o incentivo a uma coisa que a gente acha que pode ser produtiva”. Só Lobatto se anima, mesmo depois de contar o causo do show que era para ser playback, aconteceu ao vivo e ninguém pagou pra ver. “Seria ótimo esse tipo de coisa, playback é igual a cheque sem fundo, é estelionato, o cara fala que vai fazer uma coisa e não faz, e o público paga por uma coisa que não tem. Prefiro nem fazer”, insiste.

Mas todos podem ficar tranqüilos que, dadas as diferenças culturais entre Ocidente e Oriente, dificilmente esse tipo de legislação seria aplicada no Brasil. E talvez nem dure por muito tempo lá no país mais habitado do planeta. Facismo ou não, como opinou Frejat, o fato é que, mesmo depois de várias gestões, a reportagem da Outracoisa não conseguiu estender a conversa com o governo da China. Tampouco com o Cui Jian, o maior astro do rock chinês que, segundo consta, foi um dos precursores do movimento “Live Vocals”, do qual resultou a tal lei que proíbe o playback. O contato foi até estabelecido, mas quando o assunto pendeu para a repressão à dublagem, os e-mails deixaram de ser respondidos. Mesmo depois de regulamentado por lei, lá o assunto é ainda um tabu e não parece consolidado. Imaginem o qüiproquó que vai ser quando eles começarem a discutir o jabá e o pagamento dos direitos autorais.

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Comentários enviados

Apenas 1 comentários nesse texto.
  1. Dan em agosto 30, 2011 às 11:49
    #1

    Se a Britney Spears fizesse show na China seria presa. Desde o Rock in Rio 2000 ela só dubla, inclusive já foi vaiada na Austrália.
    Hoje em dia, o público está mais atento a música ao vivo, a procura de artistas famosos cantando ao vivo no YouTube é grande, e sempre que cantam mal, recebem críticas, significando que há, sim, uma busca por saber se o som que toca na rádio é real. Afinal de contas, não há coisa mais desanimadora do que ouvir uma música e, quando é tocada ao vivo, sai uma coisa horrível de outro mundo. Acredite.

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