Fazendo História

Família metal

Entusiastas da música pesada, integrantes de família paulistana editam revista, lançam discos, produzem programa de TV e festival com grandes nomes do gênero. Publicado na Outracoisa13, em setembro de 2005. Fotos: arquivo pessoal.

familiametalO ano de 1999 foi decisivo para Airton Diniz (na foto acima o último, da esquerda para a direita). Depois de 26 anos trabalhando com informática, ele finalmente conseguiu a aposentadoria e pode se dedicar a uma área que já lhe chamava a atenção há tempos: o heavy metal. No mesmo ano partiu, junto com sobrinho, Claudio Vicentin, para a cobertura do Dynamo Open Air, na Holanda, considerado então o maior festival voltado para a música pesada em todo o mundo. E nem vamos falar da cirurgia feita às pressas nos Estados Unidos, dois anos antes, onde ele renasceu com a implantação de duas pontes de safena e uma de mamária.

A matéria seria feita para a revista “Roadie Crew”, nascida lá pelos idos de 1994, e que estava prestes a publicar a edição de número 15, a primeira com todas as páginas coloridas. Hoje a revista já é referência no gênero e a família Diniz nunca mais foi a mesma. Depois dele e de Claudio, ambos editores da “Roadie Crew”, a esposa Vera entrou para o ramo como administradora e eventual fotógrafa, e a filha Cintia leva ao ar, duas vezes por semana, junto com Vinicius Neves, o programa de TV “Stay Heavy”. E, claro, todos continuam indo anualmente ao hemisfério norte em busca das novidades do mundo metálico. Só que não mais sozinhos, mas com uma verdadeira caravana de fãs capitaneados pela “holding”. Que Cancun, que nada. Wacken, a verdadeira cidade metal, é que é o canal.

Como muitas outras revistas a “Roadie Crew” começou como coisa de fã, conta Airton: “Entre 1994 e 1997 fizemos oito edições como fanzine, impresso com a ajuda de amigos. A tiragem não passava de mil exemplares e a distribuição era em lojas de discos e pelo do correio. Só dava despesa”. Como Claudio já tocava a faculdade de jornalismo a pleno vapor, a partir do número 9 a revista passou a cobrir todo o território nacional. “Atualmente temos uma tiragem equivalente à de publicações mais antigas. Estamos num mercado limitado, porém extremamente fiel, onde todas as publicações do gênero sobrevivem, apesar de tratar de um assunto considerado ‘underground’”, completa.

O sucesso da revista e as idas a eventos no exterior logo levaram a equipe a ampliar os horizontes, e em 2003 foi criado o selo Louder Music. “Por causa da insistência de parceiros ligados às gravadoras européias que buscavam alternativas para lançamentos no Brasil”, explica Airton. A Louder lançou poucos discos – o último é o da banda mineira Tuatha de Danann – mas o nome seria usado mais tarde num projeto ainda mais ousado.

METAL NA TV

A essa altura do campeonato a esposa Vera (a segunda, da esquerda para a direita), que já ajudava desde o início, começava a organizar as finanças: ”Sou formada em Ciências Contábeis e na revista faço um pouco de tudo, mas o principal é cuidar da parte financeira“, conta a matriarca, que, durante a cobertura dos festivais europeus, também é responsável por fotografar cada uma das cerca de 70 bandas que tocam ano após ano.

Cintia Diniz, a filha, também foi vista a partir de 2000 na cobertura desses festivais, e em 2003 montou, junto com Vinicius Neves, outro que acompanha a troupe, o projeto do que seria o “Stay Heavy”, um dos únicos programas de TV especializado em heavy metal no Brasil, produzido e apresentado pela dupla. O Stay Heavy – nome inspirado no tradicional cumprimento entre os fãs de metal - vai ao ar pela allTV (TV por Internet) duas vezes por semana, às terças e domingos, sempre ao vivo. “Um conhecido do Vinicius trabalhava na allTV e perguntou se ele não queria dar uma força num programa chamado ‘On The Rocks’, de classic rock. Quando ele chegou na emissora pensou: ‘por que não um programa de metal?’. O pessoal comprou a idéia e depois de três meses no ar já éramos a maior audiência da allTV”, comemora Cintia. E olha que eles nunca tinham feito nada do gênero, só gostavam do tal heavy metal – Vinicius, 26, é operador da bolsa de valores, e Cintia, 25, engenheira. Recentemente o “Stay Heavy” estreou também na TV aberta, numa parceria com a Rede NGT de Televisão, canal 48 UHF na região metropolitana de São Paulo e 26 UHF na do Rio de Janeiro.

METAL DE PAI PARA FILHA

Embora Airton tenha esperado tanto tempo para por em prática os negócios em torno do heavy metal, sua paixão pelo gênero vem desde dos Beatles e do rock dos anos 70. Para ele o encontro com o metal foi uma coisa até óbvia. “Minha ligação com o Heavy Metal (ele só escreve com maiúsculas) foi uma evolução natural do meu gosto musical e uma conseqüência da forma como eu sempre senti a música. O fã de música pesada tem um envolvimento emocional com o som. Nós não conseguimos ouvir música como pretexto para dançar ou fazer qualquer outra coisa enquanto curtimos uma música. É preciso prestar atenção nos detalhes”, prega ele, que também é fã de Steppenwolf, Slayer e Dimmu Borgir.

Mesmo sem uma explicação tão elaborada, Vera e Cintia também foram envolvidas pela música, sobretudo pelo contato com o meio e proximidade familiar. Mas não era bem assim no início. “Aprendi a ouvir heavy metal com o Airton. Lembro de um show do Metallica, que quando terminou eu disse pra ele que a banda havia tocado uma música só, do começo ao fim. Com o passar do tempo o ouvido foi ficando mais apurado e hoje curto muito o som pesado”, explica. A mesma coisa aconteceu com Cintia, que, com um semblante angelical (bem parecido com o da mãe, por sinal) às vezes não denuncia, para quem não a conhece, o gosto apurado por um dos gêneros musicais mais extremos do planeta. Só mesmo os cadernos de escola com recortes de fotos e logotipos de bandas é que entregavam. E ela nem teria escapatória, tendo Airton como referência, literalmente, ali ao lado. “Eu e minha mãe fomos totalmente influenciadas por ele. O primeiro show que fui com eles foi o do Ian Gillan (vocalista do Deep Purple). Eu tinha 10 anos e meu pai conseguiu que fôssemos ao camarim e tirei uma foto com o Gillan. Quer mais influência que isso?“, conta Cintia, cuja lembrança mais distante do contato com o rock é de quando ela tinha uns quatro anos e “cantou” nada menos que o hino “We’re Not Gonna Take It”, do Twisted Sister, indo para a escola.

A VOLTA DOS GRANDES FESTIVAIS DE METAL

Quem já esteve na redação da Roadie Crew, no bairro da Saúde (zona sul de São Paulo), logo percebe um clima de integração que praticamente funde o trabalho da revista com o dia a dia da casa de Dona Vera. De um lado da rua fica a equipe de repórteres e colaboradores, muitas vezes recebendo artistas de renome no mercado (local e internacional) para fazer as matérias que enriquecem a publicação. Do outro, a residência da família metal é quase uma extensão de todo o trabalho, já que todos ali dão uma forcinha. Até Maria José (irmã de Airton) ajuda Cintia a cuidar de detalhes importantes como vendas pela internet, assinaturas, cobranças, e ainda da revisão dos textos publicados na revista. É trabalho que não acaba mais. Sobre esse cotidiano diferenciado, Cintia opina: “A vida em família é normal. O que não é normal é o quanto trabalhamos… Como parte do escritório administrativo é em casa, não trabalhamos apenas no horário comercial, passamos mais tempo trabalhando juntos do que outra coisa, mas vale a pena”. Airton completa: “Ainda bem que estamos nisso por prazer, o que é normal nas pessoas que optam por trabalhar com Heavy Metal”.

Se tocar a gravadora Louder era uma tarefa difícil, o mesmo nome serviu para que a equipe da Roadie Crew deixasse para 2005 um passo mais ousado: fazer no Brasil um festival de heavy metal semelhante àqueles que eles cobrem todos os anos no exterior, e que não acontece desde a última edição do Philips Monsters Of Rock, em 1998. Foi assim que nasceu, em parceria com a produtora Top Link, o “Live‘N’Louder Rock Fest”. “É um projeto que já tem mais de um ano, desde o planejamento inicial até quando resolvemos juntar as experiências com a Top Link, tradicional promotora de eventos na América Latina”, conta Airton. Para a empreitada, foi fundada a empresa Top Louder, criada para viabilizar o evento, que tem grande chance de ser anual e ter mais de um dia de duração. Nesta primeira edição, que aconteceu no dia das crianças, no Estádio da Portuguesa, em São Paulo, tocaram Tuatha De Danann, Dr. Sin e Shaaman (todas brasileiras) e ainda 69 Eyes, Destruction, Rage, Nightwish e Scorpions, para um público estimado em 25 mil pessoas que encarou um sol de rachar.

O festival acabou sendo uma espécie de síntese (e ao mesmo tempo resultado) do trabalho realizado em todos esses anos. Para Airton, o papel da revista em eventos dessa natureza ultrapassou os limites de uma cobertura jornalística. “Atualmente nossa ligação com a produção do Wacken Open Air (principal festival de heavy metal do mundo, na Alemanha) é muito mais de parceria do que de órgão de imprensa. Nossa comitiva neste ano para lá chegou a 35 pessoas, entre equipes de cobertura, convidados e artistas”, enumera.

HEAVY METAL X ESTEREÓTIPOS

Para quem esta vendo de longe, pode até parecer, pelos estereótipos que envolvem o heavy metal, sobretudo na grande mídia, que a família Diniz é algo tipo “The Osbournes”, guardadas as devidas proporções. Mas os Diniz também têm seu cotidiano dentro de uma certa normalidade. Ou quase isso, afinal não é todo mundo que usa uma camiseta com os dizeres “fuck you, I’m from hell” (algo como “vai se foder, sou do mal”) em letras garrafais, ou num sábado à noite vai com os pais num show de black metal (vertente que transita pelo satanismo) e no domingo acorda cedo para ir à missa.

Mesmo com tanto trabalho, eles acompanham a chamada “cena heavy metal” de perto. “Procuramos sempre estar presente nos eventos”, conta Vera. “É uma oportunidade para encontramos nossos amigos. Às vezes depois de um dia de trabalho ficamos em dúvida: vamos ao show ou descansamos? Mas acabamos indo”, completa. No entanto, quando o assunto é estereótipo no heavy metal, Airton, 54, quase perde a linha. “Essa caracterização dos profissionais da mídia mainstream para o Heavy Metal é uma cretinice, ocorre por pura ignorância. Dizer que Heavy Metal é ‘do mal’ é outra coisa tipicamente de idiotas, de gente que não consegue ver diferença entre um trabalho artístico e o comportamento pessoal do artista fora do palco”, dispara. “O gênero ainda é vitima de muito preconceito, especialmente no Brasil. Mas o cenário é consistente e não há a menor possibilidade de que deixe de existir. Tenho dados que permitem afirmar que continua crescendo, é o gênero mais globalizado que existe, tem banda de Heavy Metal em todo o mundo. E ainda tem ‘intelectualóides’ dizendo que o Metal morreu”, conclui, com firmeza. E quando este estereótipo aponta o metal como típica coisa de adolescente, Vera, 53, também não está nem aí: “convivo com pessoas de todas as idades no cenário de heavy metal, tanto fãs como muitos dos artistas já estão com idade avançada. Já conversei com adolescentes que falaram que gostariam muito que seus pais fossem como o Airton, eu e Cintia, que fossem com eles aos shows, que curtissem o mesmo tipo de música”, finaliza.

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