Fazendo História

Nação faminta

Ícone maior do mangue beat, Nação Zumbi muda de gravadora, lança disco produzido por Mário Caldato Jr. e resgata sonoridade ao vivo. Publicada na Outracoisa 22, de agosto de 2007. Foto: Fabio Braga/Divulgação.

nacaozumbiA última grande renovação dentro da música popular brasileira veio de Recife e se chama mangue beat. Foi lá que Chico Science e mundo livre s/a fincaram uma parabólica na lama e partiram para conquistar o País. O resto história e todo. A novidade, agora, é que a Nação Zumbi está com disco novo na praça – o sétimo de sua carreira – e se renova, ela própria, mostrando um fôlego robusto para quem não acreditava na continuidade da carreira da banda após a perda de Chico Science – vítima de um acidente de carro em 1997.

Os novos ares vêm não só pela mudança de gravadora. A banda, que ficou conhecida em todo o Brasil via Sony, passou pela Trama e inicia agora um contrato com a Deckdisc. Coisa que se tornou realidade por conta de uma parceria que está no “ensaio” há anos. Depois de produzir uma faixa aqui e outra acolá nos álbuns da Nação, enfim Mário Caldato conseguiu tempo para fazer um disco inteiro. “O Mário tá incrustado na nossa história, desde o ‘Afrociberdelia’, quando a gente se conheceu e ele mixou uma faixa”, conta o guitarrista Lúcio Maia. “A gente faz a própria produção desde o segundo disco, mas é um processo exaustivo. Quando você é produzido, só se preocupa em tocar, é completamente parque de diversões”, completa. Só para constar, o brasileiro Mário Caldato Jr. mora em Los Angeles e tem um currículo e tanto: já produziu discos para Beastie Boys, Marcelo D2, Beck, Soulfly, e trabalhou com o Super Furry Animals, numa passagem da banda galesa pelo Rio. A parceria de Caldato com a Nação resultou em “Fome de Tudo”, um disco que não chega a ser conceitual, mas tem lá algo de temático – em poucas audições se percebe a recorrência ao assunto. Lúcio explica: “A fome que a gente sugere é a fome da abrangência, da vontade de tudo, de se expandir ao máximo. A Nação Zumbi sempre foi uma banda hiperabrangedora, sempre agregamos vários tipos de referências, de Afrika Bambaataa a Lia de Itamaracá”.

A faixa-título é um dos realces do disco. Além da pérola “a fome tem uma saúde de ferro” em um dos versos, uma batida mais dançante e agitada se destaca num coletivo de músicas que, juntas, soam um tanto brandas para uma banda acostumada a misturar, ao vivo, guitarra distorcida no talo com o poderoso som das típicas alfaias do maracatu. Foi talvez pensando nisso que Caldato optou por tirar um som mais orgânico no estúdio. Lúcio Maia, por exemplo, gravou vários takes de uma só vez, sem usar o recuso de overdubs – gravar várias vezes o mesmo trecho para encorpar o som. “Quando eu comecei a gravar, o Mário perguntou: ‘Pra que você vai gravar outra guitarra?’. Eu disse: ‘Para o som ficar maior’. E ele respondeu: ‘No show não tem outra guitarra e o som é grande, você precisa é tirar um bom timbre de guitarra’. Eu nunca tinha abordado esse aspecto, na maioria das vezes faço os arranjos pensando em como fazer no estúdio, então tive que me readaptar”, explica o guitarrista, dando uma fotografia do processo de gravação do disco. Assim, “Fome de tudo” aproxima a banda daquilo que ela é ao vivo, mostrando uma Nação Zumbi mais autêntica, o que também tem a ver com o “modus operandi” deles. “A Nação é 100% jam session”, admite Lúcio. “Acho que só na época de Chico é que ele chegava com uma música pronta. Nós vamos para o ensaio, microfonamos tudo, vamos tocando à vontade, depois a gente escuta, faz um quebra cabeça do que gravou e a música parte dali”.

Convidados de peso

Um bom exemplo disso é a levada preciosa desenvolvida na climática “Inferno”. Apesar de suave, guarda uma certa tensão para desenrolar uma desilusão amorosa de forma incomum, com o protagonista pagando uma certa penitência na terra do Cramunhão. Curiosamente – e com o perdão do trocadilho - a cantora Céu participa fazendo uma segunda voz para Jorge Du Peixe. E, claro, não poderia faltar um belo solo de Lúcio no final. “Já faz uns quatro anos que a Céu e a gente tá se trombando direto, pra fazer som, trocar idéia. E ela é casada com o irmão de Rica Amabis (do grupo Instituto), que é como um irmão pra gente. Eu, Dengue (baixo) e Pupilo (bateria) gravamos no disco dela, e a agora foi a vez dela”, explica Lúcio. Já Money Mark, produtor e tecladista, espécie de quarto beastie boy, aparece em “Assustado”. A conexão (claro) foi feita por Mário Caldato. “Eles são amigos de infância”, explica Lúcio, “sempre achamos que seria do caralho chamar o cara, e a hora foi agora, a gente fazendo esse disco com o Mário. E calhou de no meio da gravação o Mário ter que fazer um outro projeto em Los Angeles. Quando ele voltou, um mês depois, trouxe a parte do Mark, e a gente ficou feliz pra caralho”. A música, com uma levada de guitarra das mais instigantes, traz outro achado: “Maloqueiro não se assombra com qualquer coisa, não”. A título de registro, o compositor Junio Barreto aparece em “Toda surdez será castigada”, e “Onde tenho que ir” conta com trecho do filme “O profeta da fome” (1970), de Maurice Capovilla, na voz marcante de Paulo César Pereio.

Além do novo produtor, o fato de a Nação Zumbi ter feito um disco mais experimental (o viajante “Futura”) contribuiu para a busca desse som ao vivo, o tal jeito orgânico que marca “Fome de tudo”. É o próprio Lúcio quem admite. “Quisemos fazer um disco bem pra cima, com mais evidência nos tambores, porque ficou todo mundo reclamando do ‘Futura’. Acho que estão bem encaixados, não foi nada forçado. Teve uma pá de gente que já ouviu e falou que esse disco tem guitarra pra caralho”. Nem tanto, Lúcio. Ou, por outra, há guitarras, sim, mas distribuídas em texturas e arranjos salpicados aqui e acolá, em meio a outros efeitos de estúdio, bem no jeito “menos é mais” que Caldato domina. Caso de “Bossa nostra”, que abre o disco no clima, e de “No Olimpo”, que arremata as doze faixas sossegadamente, na moral. Guitarras, quem sabe, só em “Maquinado”, disco solo que Lúcio lançou em maio.

Conversa vai, conversa vem e o assunto mangue beat sempre vem à tona. Empolgado, o guitarrista defende que “Recife não criou um gênero, criou uma cena. Ali vem todo o tipo de som, não existe um rótulo para cidade, assim com tem rock gaúcho, rap de São Paulo ou samba do morro do Rio”, elabora. “Na minha opinião, mangue beat é muito mais uma atitude, um comportamento”. Quem, então, estaria fazendo mangue hoje? A Nação Zumbi, claro. “Recife é um grande aterro, o Chico fez essa metáfora com a fertilidade e quem mais se utilizou disso foi a Nação Zumbi, nenhuma outra banda foi tão a fundo dentro desse aspecto sonoro tradicional, da procura pelas suas próprias raízes, de se admitir como brasileiro”, defende Lúcio. Por isso talvez ele tenha renunciado a uma carreira internacional junto do Soulfly, a banda que Max Cavalera montou depois de deixar o Sepultura, há dez anos, e na qual Lúcio tocou no primeiro álbum. “O Max me convidou umas 45 vezes, mas eu sempre tava ocupado. E aquilo não é o meu mundo, ia fazer o que? Acho que eu tomei o caminho certo, a banda estava me esperando”, conclui Lúcio. O Brasil e a Nação Zumbi agradecem. Oxalá a fome deles nunca seja saciada.

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