Fazendo História

Fernanda Abreu
Uma nova fase, na paz

Entrevista com a cantora, na época do lançamento do disco “Na Paz”, publicada na Dynamite número 77, de outubro de 2004. Foto: Divulgação.

fernandaabreu04Se existe alguém que merece levar o crédito por ter criado o conceito de música pop no Brasil, este alguém é Fernanda Abreu. Revelada pela Biltz no boom do rock nacional dos anos 80, ela demorou, mas iniciou timidamente uma carreira solo, fincada inicialmente na dance music, que logo desencadeou para um trabalho mais autoral. Misturando a eletrônica crescente mundo afora, com o funk carioca, rap, pitadas da mpb e resquícios do rock dos anos 80, Fernanda conquistou espaço de destaque na música brasileira. E isso tudo com uma temática cosmopolita tipicamente carioca

Agora, já com mais de vinte anos de carreira, a cantora inicia uma nova fase, fruto das mudanças por que passa o mercado fonográfico nacional. Para lançar o novo disco, “Na Paz”, ela montou sua própria gravadora, a Garota Sangue Bom, pela qual promete lançar também discos de outros artistas, como o do parceiro Fausto Fawcett, e projetos diferenciados dela própria. Portando armas que atiram flores, em “Na Paz” Fernanda Abreu mostra um lado mais calmo e sereno, sem, entretanto, escapar do caldeirão de referências que lhe é peculiar.

Para saber mais detalhes dessa empreitada, do disco novo e muito mais, batemos um papo virtual com a cantora, que resultou na entrevista que você confere agora:

Esse disco parece ser mais reflexivo e menos dançante/festivo que os trabalhos anteriores. Isso tem a ver com uma certa maturidade profissional?

Acho que tem a ver com o assunto do disco, com a idéia nova de samba funk que o disco traz (o que você está chamando de maturidade profissional), mas na verdade não foi intencional, foi acontecendo. Ao mesmo tempo em que os bpms são mais desacelerados, o poder dos grooves está assegurado com batidas bacanas e linhas de baixo venenosas. Acho também que é um pouco a influência do hip hop, que não trabalha com bpms muito acelerados.

Explique um pouco mais sobre essa história da velocidade dos bpms. Que bandas ou tendências do hip hop te influenciaram nesse sentido?

Os bpms são as batidas por minuto, ou seja, o andamento da música. Não tem um artista ou banda específica que tenha me influenciado, mas percebemos, no decorrer do tempo, que muitos grooves de hip hop e r&b desaceleraram, tipo Missy Elliot, Fuggees, Dr. Dre, Tupac, etc… Mas não é regra.

Tem só uma música do Fausto Fawcett nesse disco. Essa parceria tá enfraquecida?

Não, de jeito nenhum. Essa parceria está tão forte que o próximo projeto do selo Garota Sangue Bom será um disco dele com produção minha.

Você já pode adiantar algo sobre esse disco? Você irá compor e cantar com ele ou só produzir?

Tivemos alguns encontros e sugeri a ele um tema único para as 10 músicas que estarão do disco. Vou produzir e talvez compor algumas coisas com ele, mas não pretendo cantar. A idéia do projeto ainda é segredo.

No disco diz que a sua banda se “auto-sampleou”. Como é isso? Foi para evitar problemas de direitos autorais com outros artistas, dos quais, eventualmente, você samplearia?

Eu quis subverter um pouco e dar uma sofisticada nesse conceito de samplear, que utilizo desde o meu primeiro disco solo. Então, com a ajuda da tecnologia atual e com um equipamento chamado CDJ-1000, consegui gravar num CD tracks do meu próprio disco e utilizá-los como samples, e também em scracthes nos arranjos. Quanto à utilização de samples de outros artistas, continuo usando, pedindo autorização e pagando os direitos.

Ao invés de exaltar o Rio como antes, você parece mais preocupada com os problemas da cidade. As condições de vida pioraram realmente ou você é que resolveu mudar o foco?

Bem, meus discos falam essencialmente do ser humano urbano e suas relações sociais e sentimentos individuais, onde a interação do homem com a cidade é a fonte de inspiração. Então, dessa relação, o Rio é de certa maneira um pano de fundo, uma espécie de cidade cenográfica para esse filme das relações humanas/urbanas. Mas existe sempre uma conexão da cidade com a nação, com o País. Ser brasileiro, viver num país de terceiro mundo, cheio de desigualdades e ao mesmo tempo rico de belezas naturais e de cultura popular é o que revela a nossa identidade.

Há muita reflexão no disco, mas poucas propostas para se chegar na paz citada no título. Você não pensa em fazer e/ou participar de entidades com essas preocupações (assim como o Rappa, por exemplo, que apóia a FASE)?

A paz propriamente dita nunca será alcançada, pois a alma humana é violenta. O que acho importante enfatizar nesse momento de medo generalizado em todo o mundo, não só no Brasil ou Rio de Janeiro (medo que escraviza e imobiliza o homem), é a busca dessa atitude pacífica. A idéia central é desarmar a mão, o espírito e o coração. O disco não é um panfleto e não pretende ser um manual de como se chegar à paz. É apenas uma reflexão sobre esses temas que nos atordoam todos os dias.

Alguma restrição ao trabalho panfletário d’O Rappa ou você não se referia a isso?

Não acho o trabalho do Rappa panfletário. Adoro o Rappa e acho muito bacana a preocupação social deles. O que eu digo é que não tem uma única forma de fazer um trabalho de inclusão social no Brasil através da música.

Você sempre exaltou o funk carioca, mas a sua música tem uma qualidade e um nível intelectual rebuscado, ao passo que a música feita nos morros é, em geral, de baixíssimo nível. Você não vê aí um paradoxo?

É claro que existe uma diferença enorme entre a música que eu faço e o funk carioca. Mas a minha formação é de classe média branca, letrada e bem nascida. O que acho importante é aceitar essa música como legítima expressão cultural da cidade. É preciso encarar de frente o preconceito que existe com essa galera preta, pobre e favelada que se expressa através dessa música. É um movimento autêntico que deve ser incluído e digerido pela cidade do Rio. Não posso querer que eles façam um funk como eu faço e não pretendo fazer um funk como eles fazem. Mas acho legal que exista essa conexão entre nós.

Você não acha que o fato de a música ser ruim, com letras de baixo nível, contribui, de alguma forma, para a manutenção desse preconceito?

Não. Acho que o preconceito é racial e social. Se fossem brancos de classe média fazendo esse som, todos achariam engraçadinho e tal, e seria rapidamente incluído como um estilo, talvez “nonsense” ou “besteirol”. As marchinhas de Carnaval antigas e o forró, por exemplo, também tinham letras de duplo sentido e sem uma poesia sofisticada. O funk não pode ser “vendido” como a bossa nova.

Você não acha que o funk carioca agrada muito mais aos antropólogos e intelectuais (do ponto de vista social) do que tem relevância musical?

Eu acho que o funk agrada mesmo é a comunidade. Os bailes são lotados, a música é divertida e ótima para dançar. Aos poucos tenho certeza que nascerão várias vertentes do funk em relação não só às letras, como a levadas novas, enriquecendo-o ainda mais. Mas adoraria que o funk fosse incluído no circuito de música do Rio e do Brasil. Acho que essa “responsabilidade” de se tornar nacional seria enriquecedor para o funk.

Li uma vez um comentário seu comparando o funk carioca com o movimento dos sambistas do início do século passado. Você não acha que os sambistas faziam algo muito mais original musicalmente, e com conteúdo de bom nível nas letras, do que o funk faz hoje?

Não necessariamente. Havia sambas com uma poesia muito bonita e simples, mas também sambas sem grandes inspirações poéticas. O mais legal, e que conquistou o Brasil, foi que o samba falava da vida das pessoas simples, do brasileiro comum com uma poesia sem rebuscamento. Acho que o mundo mudou, a cultura de massa se mediocrizou e o funk reflete isso também. Eu, por exemplo, sempre estudei em escola pública e passei em dois vestibulares nos primeiros lugares, ou seja, o ensino público dava conta. Acho que tudo isso, mais o domínio da cultura de consumo deixa para trás aquele tipo de poesia. Afinal, quem hoje em dia (talentos jovens) são os grandes poetas do samba?

Pergunta difícil para quem trabalha com rock. Mas há um sem número de novos artistas no samba também, assim como no rock, que está fora da mídia. Deve ter um grande poeta nesse meio, sim, você não acha? Olha a dica aí para a dona de gravadora…

Eu tenho certeza que existem muitos talentos soltos por aí, em todos os gêneros musicais! Eu não sou da corrente que acha que a música brasileira está carente de talentos novos. Ao contrário, sempre que posso tento apresentar alguém novo, já que tenho essa oportunidade.

Na capa do disco você aparece em trajes militares e portando armas pesadas que atiram flores. Você não teme que a sua mensagem seja mal compreendida?

Essa imagem é realmente forte, mas não tenho medo de ser mal interpretada, pois a imagem, apesar de forte, é clara: numa sociedade bélica como a nossa, utilize o seu maior símbolo (a arma de fogo) atirando flores. Ou seja, subverta-o. Não temos condição de falar de paz hoje se não falarmos de guerra, violência, armas de fogo, etc…

O disco “Na Paz” é o seu primeiro trabalho como artista independente, e pelo seu próprio selo. Foi uma iniciativa sua esse processo ou realmente não havia outra alternativa, do ponto de vista mercadológico?

Havia o velho status quo. Ser uma artista exclusiva de uma multinacional, mas preferi arriscar. Não sei se dará certo, se conseguirei seguir em frente nesse caminho ou se terei que voltar para uma major, mas estou apostando todas as minhas fichas nessa nova relação artista/gravadora.

De outro lado, embora independente, o selo tem a distribuição da EMI, gravadora pela qual você sempre lançou seus trabalhos. Por que você não partiu para uma postura completamente independente, como a do Lobão, por exemplo?

Não tenho estrutura nem grana para ter uma situação completamente independente.

Então você também acha que o Lobão só se sustenta como independente porque é bem remunerado pelo trabalho dele dos tempos das multinacionais?

Não. Eu acho que o Lobão está sustentando o projeto independente dele com o retorno que esse projeto está dando. Eu admiro o trabalho que o Lobão está fazendo e torço para que renda ótimos frutos.

Como funciona essa parceria com a EMI? Quem custeia o que? Ficou mais rentável para o artista ou é mais ou menos como era antes?

Em termos de grana ficou mais ou menos a mesma coisa, mas em termos de poder, não. Ou seja, tudo tem que ser feito em comum acordo e o mais importante: os fonogramas são de minha propriedade. No momento, eu pago o disco inteiro e eles pagam (num co-gerenciamento) a verba de promoção e a distribuição fica por conta deles.

O selo Garota Sangue Bom pretende lançar outros artistas ou só foi criado para administrar a sua carreira?

Pretendo lançar outros artistas e outros projetos meus também, mas vai depender do sucesso financeiro do selo.

Agora que você é uma artista independente, há a possibilidade de você fazer trabalhos que você queria já fazer há algum tempo, mas que por estar dentro de uma grande gravadora, nunca pode fazer?

Sim! Gostaria de fazer um disco de samba, um disco de remixes radicais, e pretendo lançar um DVD com meu primeiro show (do primeiro disco, “SLA Radical Dance Disco Clube”), que filmei no Morro da Urca, em 90, comemorando, no ano que vem, 15 anos de carreira solo.

Como é conciliar o seu trabalho, agora como empresária, cantora e mãe? Você deve fazer menos shows de agora em diante?

Espero que não! Adoro o palco e não posso viver sem ele. O que tenho é que ganhar mais dinheiro para poder contratar pessoas para administrar a editora, o selo (a parte financeira e jurídica), o meu estúdio (Pancadão)… Mas a casa e a família, eu mesma pretendo continuar dando conta.

Você não tem medo de o lado empresarial prejudicar o artístico? O Lobão, por exemplo, depois que virou um empreendedor, quase não tem lançado discos…

Eu acho que comigo vai ocorrer o contrário. Como tenho um estúdio, acredito que vou produzir mais e mais música.

Quando a Blitz voltou há um tempo, soube que você foi convidada, mas optou por não participar. Por que você declinou?

Porque a Blitz para mim acabou em 86.

Sua música sempre foi muito pautada pelo “Rio way of life”. Isso causa um certo constrangimento em outras cidades? No fim das contas você acaba fazendo mais sucesso e vendendo mais no Rio do que em outros lugares?

Por incrível que pareça, não. Sabe como é: santo de casa não faz milagre. Eu tenho um público muito bacana no Brasil todo e acho natural o fascínio que o Rio exerce sobre as outras cidades brasileiras, afinal o Rio já foi, e de certa forma ainda é a capital cultural do Brasil.

Uma curiosidade: no fundo, no fundo, você não acha que se torcesse pelo Flamengo comporia bem melhor o seu perfil “carioca-típico”?

É o que todo mundo diz, mas meu coração é cruzmaltino!

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