O Rock Como Ele é

Final feliz

Filho de operário, era só pensar nisso que se lembrava das excepcionais letras dos Garotos Podres, escritas pelo vocalista que, nas horas vagas, era professor de história.

Quando dobrou a via transversal em direção o ponto ainda deu uma corridinha para alcançar o ônibus, mas o motorista não olhou pelo retrovisor e arrancou rapidamente. Maldito condutor apressado. Agora, segundo os cálculos de um velho usuário de coletivos na madrugada, teria que esperar cerca de uma hora por outra composição. Nessas horas sentia pena dos amigos de além Dutra. Ao menos, morava numa cidade em que certas linhas circulavam durante toda a noite, ainda que com grandes intervalos entre um carro e outro. Era adepto da teoria sucessória segundo a qual o último ônibus era mera ficção. Depois de um, sempre passaria outro, e assim por diante.

Quando passava a noite nas esquinas esperando o ônibus que nunca vem, se lembrava da velha música do Cólera. Nunca fora punk de verdade, mas sua origem no meio do proletariado suburbano não o deixava se afastar de temas comumente abordados pelo punk brasileiro do final da década de 70/início da de 80. Filho de operário, era só pensar nisso que se lembrava das excepcionais letras dos Garotos Podres, escritas pelo vocalista que, nas horas vagas, era professor de história. Lembrava que, nos anos 80, mesmo na Lapa, coração da Cidade Maravilhosa, toda a juventude era um pouco punk, um pouco new wave, um pouco pós punk. Mesmo os endinheirados, ainda que só por opção estética.

Cogitava acenar para um carro de praça, afinal já não era nenhum garoto e, ao menos em tese, poderia usufruir de tal conforto classemediano. Hesitava, entretanto, por conta da severidade financeira a qual era submetido depois de sucessivos arrochos salariais. Lembrava que continuavam lhe pagando o mesmo valor por uma resenha de um disco de um determinado artista há mais de dez, quinze anos. Definitivamente os avanços da tecnologia que resultaram na internet haviam jogado sua profissão no lixo. Agora, na gigantesca babel virtual, todos tinham opiniões formadas sobre tudo, de modo que talvez a do velho crítico não importasse mais. Ao menos não a ponto de lhe conferir boa remuneração.

No que refletia sobre o tema, decidiu ir ao isopor mais próximo e pedir outra gelada. Assim, poderia pensar melhor. Era contra a existência de ambulantes no meio das calçadas, mas nessas horas abria uma exceção em flagrante benefício próprio. Não seria mesmo candidato a nada, então suas mazelas jamais seriam exploradas por adversários inescrupulosos em rede nacional numa eventual disputa eleitoral. Ademais, na alta madrugada é que a cerveja do isopor, já envolta pelo gelo recém derretido, está em sua melhor temperatura para o consumo naquele calorão dos infernos. Ao menos desenvolvera essa tese, depois de longos anos circulando a pé pelas madrugadas sem fim.

Era bom de conta, mas, àquela altura, já não conseguia calcular o quanto havia andado nem o quanto havia gasto com as latas e garrafas do tipo one way. Talvez a quantia fosse o bastante para bancar o táxi, mas essa não era uma conclusão legal de se chegar com o dia começando a aparecer no horizonte. Mesmo porque, ao se abaixar para agarrar uma das ultimas embalagens cheias com o líquido dourado, esbarrou numa frágil mão de menina que, de seu lado, resgatava outra lata das águas nem tão geladas assim. Na inevitável conversa que se desenrolou, decidiram iniciar o dia nas areias de Copacabana. Indicação da moça, que sabia de um quiosque que abria cedinho. Bendito condutor apressado.

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