Fazendo História

Feito em casa

Instrumentos inventados ou adaptados dão cara própria ao trabalho dos artistas. Matéria publicada na Outracoisa número 19, de março de 2007. Fotos: Reprodução/internet.

zefirinabombaNunca foi tão fácil aprender a tocar um instrumento. Basta o sujeito juntar uma graninha que as lojas especializadas têm uma variedade razoável de ofertas. É guitarra pra cá, bateria pra lá, teclados a dar com o pau, uma variedade pra ninguém botar defeito, certo? Certo, mas depende e quem está do lado de fora da vitrine. Se a tecnologia evoluiu e hoje é parceira imprescindível na música pop, nossos artistas estão cada vez mais em busca de algo que faça a música soar diferente.

Às vezes este “diferente” pode aparecer ao acaso ou por força de uma necessidade também inerente aos nossos modernos tempos. Com Ilsom Barros, o guitarrista da banda paraibana Zefirina Bomba (foto, Ilsom é o do meio), foi assim. Ele estava saindo do grupo anterior, o fabuloso Pau de Dá em Doido, queria iniciar um novo projeto, mas faltava-lhe a verba para investir numa guitarra. Antes, Barros só cantava e tocava instrumentos de percussão. “Eu não podia comprar uma guitarra, mas tinha uma viola de dez cordas. Meu irmão tinha desmontado a guitarra dele e sobrou um captador. Aí ele disse: começa a tua guitarra com os captadores”, conta um Ilsom Barros que, na falta de uma opção mais atraente, abriu um buraco na viola e instalou a peça que seria a marca registrada de sua banda. “Quando liguei no som, rolou. Gostei do timbre, parecia uma coisa estranha, era mais agudo que uma guitarra”, avalia o guitarrista violeiro. Antes de se enveredar na música, Ilsom estudava numa escola técnica para começar a levantar uns caraminguás logo cedo. “Estudei mecânica, sei soldar, trabalhar com torno. O resto fui descobrindo de ouvido, pelo barulho, testando até acertar. Depois, peguei umas revistas para entender melhor o captador, a história do material, da tonalidade… e fui chegando nas paradas até encontrar uma Del Vecchio antiga, de 12 cordas”, recapitula Ilsom, hoje quase um luthier (fabricante de guitarras) às avessas. Quem já ouviu as músicas do Zefirina Bomba certamente duvidou que aquele esporro todo vinha de um violão.

Foi o que aconteceu com Carlos Eduardo Miranda, produtor e notório revelador de bandas novas. Um belo dia ele abriu a caixa de e-mails e se deparou com uns arquivos em mp3 enviados lá da Paraíba. “Eu tinha o cartão dele e no começo de 2002 resolvi mandar, através de uma amiga que tem internet com banda larga, mas não achei que ele fosse escutar”, conta Ilsom. Ledo engano, no mesmo dia Miranda retornou querendo saber como aquele som havia sido gravado, viu a banda ao vivo no Mada em 2003 e se tornou produtor do disco de estréia do Zefirina, “Noisecoregroovecocoenvenenado”. Para quem não tinha grana nem para comprar uma guitarra, até que a coisa andou bem.

Mais um pouco e Ilsom, caso a carreira do Zefirina não estivesse deslanchando, poderia até pensar em se tornar um aprendiz de luthier. Seiji Tagima, este sim um profissional, não se importaria em criar uma espécie de linha de instrumentos modificados. Sob a chancela do seu sobrenome ele fabrica e conserta instrumentos há quase trinta anos, além de revender marcas de renome no mercado. “Respeitando-se a parte técnica do instrumento quanto à afinação, ‘tocabilidade’ e ergonomia, nunca tive uma idéia ou de algum músico que eu achasse fora do normal. Apesar de existirem alguns instrumentos no mercado com essas características”, revela Tagima, que elogiou a iniciativa do guitarrista: “Ele está de parabéns, pois conseguiu chegar a uma característica de som a sua maneira. Faria o que ele fez na fábrica com todo o prazer”.

Mais do que adaptar instrumentos alguns músicos vão fundo na proposta e criam eles próprios suas almas-gêmeas. Ou, melhor, tiram som dois lugares mais inusitados, transformando qualquer objeto num verdadeiro instrumento, ao menos durante uma sessão de gravação ou na hora do show. Que o diga Lourenço Brasil. De percursionista na década de 70 e tecladista na de 80, ele entrou nos anos 90 como Loop B, retirando som de todo o tipo de tralha. Tanque de gasolina de automóvel, carcaça de máquina de lavar, cartuchos de bala de canhão, churrasqueira, aro de cesta de basquete, furadeira… É tudo com ele mesmo. “O industrial foi um rótulo que encontrei para me encaixar em algum lugar. De 94 a 96 meu som era bem pesado, então o termo industrial cabia. No álbum “A música toca” tem o ‘Samba da furadeira’, onde os sons de uma furadeira raspando num tanque de combustível fazem o papel de uma cuíca”, explica, citando como referências os ícones alemães do Einstüerzende Neubauten, que quando estiveram no Brasil não se furtaram em carregar correntes, chapas de aço, britas e pontes rolantes. Muita gente usa recursos eletrônicos para reproduzir esses sons em estúdio, e mesmo em shows, com o auxílio de computadores, mas esta não é exatamente a predileção de Lourenço. “Eu pretendo um dia fazer um ‘Loop B acústico’. A eletrônica está aí, podemos usá-la, é uma questão de preferências ou de possibilidades. Acho uma enorme bobagem esse papo de que a eletrônica é a música do futuro”, acredita.

Outra grande referência citada por Loop B é Hermeto Pascoal, pioneiro em tirar som dos locais mais improváveis. Ele, entretanto, faz uso de peças mais orgânicas. “Para mim tudo é som”, conta Hermeto, “até com as formigas, sapos e passarinhos, onde me criei, eu fazia sons, já sentia que era música. Para mim até o silêncio é som”, exagera. Se o primeiro instrumento “de verdade” foi o “pé de bode”, nome dado em Lagoa da Canoa, sua cidade natal, à sanfona de oito baixos, ele garante que começou tocando “o que tinha no mato: talo da mamona, os ferrinhos do meu avô ferreiro, e principalmente a água e os animais”. Hoje, com uma carreira de mais cinqüenta anos, o bruxo, como é conhecido justamente por tirar som de tudo o que é lugar, tem no currículo músicas com destaque para esses sons alternativos. No disco mais recente, “Chimarrão com rapadura”, gravado em parceria com Aline Morena, a faixa “Família” tem um trecho só com mangueira e piscina com água. Entre os tantos novos instrumentos criados pelo alquimista estão a “escavozeleta” (escaleta com voz) e a “chavozeleira” (chaleira com voz). Quanto a modificar instrumentos, Hermeto fecha os olhos e inova: “Posso tocar um piano imaginando uma bateria e vice-versa, e isso pode ser aplicado para qualquer instrumento”, crava, como que aprovando as experiências de Ilsom Barros.

E aí voltamos ao Zefirina, que no palco também surpreende. Mesmo ao vivo é difícil de acreditar que aquele som distorcido e aloprado está vindo de um violão. Mas é quando o final do show se aproxima, e o sujeito já está acostumado com os acontecimentos, que o bicho pega de verdade. É que se Ilsom se desentende com a engenhoca que desenvolveu, não perdoa e espatifa a viola eletrificada no chão sem dó. “O final do show é foda, quando a gente começa a esmurrar os instrumentos é que dá vontade de fazer alguma coisa. Escrachei tanto com a Del Vecchio que ela não agüenta mais, o cara que conserta já disse para eu parar com isso, que o corpo já ta todo estourado, o braço comprometido. Então eu levo sempre uma reserva para esse final de show, se der a adrenalina de bater a viola no chão, é uma outra, não é ela”, diz ele, entregando que já tem quem cuide de levar a coitada para o hospital. E, a propósito disso, a tal grana que faltava para ele adquirir a sonhada guitarra já pintou: veio justamente dos shows onde a viola é personagem principal. “Comprei uma Guild 1973 usada de um cara que foi o único dono. Paguei em 200 prestações de 100, 150 reais, fui recebendo cachê e pagando”, conta o engenheiro de captadores. Difícil agora, depois dessa história toda, é ele se livrar da tal Del Vecchio.

Cada um com suas adaptações

sergiodiasNem sempre foi fácil adaptar/desenvolver instrumentos que agradassem aos músicos. Nos primórdios da eletrificação o processo já era complexo. Na década de 50, Leo Fender, pioneiro fabricante de guitarras e hoje uma lenda no ramo, penou na mão de um certo Dick Dale, e não só pelo fato de o guitarrista ser canhoto – Dale sempre tocou sem inverter a posição das cordas. Só que a cada dia que o construtor aparecia com um novo amplificador, o chamado rei da surf music tratava de colocar tudo pelos ares. Não é à toa que até hoje é reconhecido também como o “pai do heavy metal”.

Jimi Hendrix, talvez o maior guitarrista em todos tempos, não colocava fé na surf music, mas também era canhoto e adorava alterar suas guitarras. Uma delas, conhecida como “flying angel”, foi recentemente resgatada pelo museu do Hard Rock Cafe, em Londres. O instrumento foi originalmente fabricado para se tocar blues, e o próprio Hendrix fez a adaptação para usá-la no rock pesado que então engatinhava. O mesmo rock pesado no qual o Korn, há cerca de dez anos, fez história com seus dois guitarristas tocando guitarras de sete cordas e afinação mais baixa, ao passo que Max Cavalera, já no Sepultura e depois no Soulfly, subtraiu duas das seis de seu instrumento.

No Brasil, na década de 60, os Mutantes apareciam nos festivais de música portando instrumentos tão inventivos quanto as músicas que piravam a juventude da época. O segredo deles vinha de dentro da casa dos irmãos Sérgio Dias e Arnaldo Baptista: o primogênito Cláudio César era quem construía os instrumentos e toda a aparelhagem utilizados por eles. Numa época de tecnologia insipiente e muito distante da globalização, Cláudio era um verdadeiro Professor Pardal, não só adaptando como fabricando instrumentos inteiros - Sérgio Dias aparece na foto com a guitarra inventada pelo irmão, que usa até hoje. O grupo carioca Binário, de seu lado, para garantir energia e potência para tocar na praia, foi achar no interior de São Paulo um inversor que, plugado numa bateria de carro, dá a autonomia desejada. E o instrumental Macaco Bong traz um guitarrista que se recusa a usar pedais e investe na adaptação dos captadores para lançar mão de solos formidáveis à Joe Satriani. É, cada um com as suas manias.

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