Fazendo História

Ultraje a Rigor
O casamento perfeito entre rock e bom humor

Entrevista com Roger Rocha Moreira publicada da Dynamite número 72, de abril de 2004. Foto: Divulgação/Deckdisc

ultrajeAo se referir ao boom do rock dos anos 80, geralmente a mídia cita nomes como Paralamas, Titãs e Legião Urbana, raramente aparece o Ultraje a Rigor. Mas quem pode esquecer a importância de um disco do naipe de “Nós Vamos Invadir a Sua Praia”, que, se escutado hoje, parece ser mais uma coletânea de grandes sucessos? E que banda, daquela época, nunca teve o nome associado a nenhum grupo estrangeiro, além de traçar retratos certeiros da juventude que se preparava para superar a ditadura militar e encarar um lento processo de abertura? O Ultraje conseguiu tudo isso, e ainda com o necessário humor intrínseco ao rock.

Na década de 90, com o sucesso de bandas do tipo “engraçadinhas”, curiosamente o Ultraje teve dificuldades para gravar, até que Roger, único remanescente da formação original, bancou a gravação de um álbum ao vivo (numa época em que este artifício ainda não tinha virado a mina de ouro das gravadoras) e levou sete anos para conseguir quem o lançasse. O que aconteceu em 99 e rendeu mais um disco de ouro para a banda.

Reformulado, com a volta de Serginho Serra (guitarra) e a entrada de Mingau (ex-365, baixo) e Bacalhau (ex-Rumbora, bateria), o Ultraje lançou “Os Invisíveis” em 2002, e continua fazendo shows a torto e a direito, mas só em locais onde se pode ir de ônibus, uma vez que Roger, que até já morou nos States, contraiu um terrível medo de avião. Num entardecer no Morro da Urca, cenário símbolo do Rio de Janeiro, Roger concedeu esta entrevista à Dynamite, falando da fase atual da banda, dos altos e baixos da carreira do Ultraje, dos tempos da censura e do novo governo. Para o paulistano que um dia jurou “invadir sua praia”, a vista não poderia ser melhor.

Como foi o desempenho do “Invisíveis”, já que o disco anterior foi disco de ouro?

Roger Rocha Moreira: O outro disco foi muito especial, eu tinha certeza que ele ia fazer sucesso, pelos shows que nós vínhamos fazendo, pelo contato com o pessoal via Internet ou mesmo depois dos shows. Era um sonho antigo, um disco que eu queria ter lançado em 92. Na época os caras queriam lançar uma coletânea, depois nós já estávamos sendo fritados na gravadora e não tínhamos percebido. Daí eu fiquei com esse projeto, gravei o disco sozinho, banquei a gravação em 96, e finalmente saiu em 99. Já o “Invisíveis” os fãs gostaram, que é o que importa para mim. A crítica gostou muito também, mas não vendeu nada. Eu não sei se é problema de distribuição ou mercado muito ruim mesmo. Teve algum problema, porque eu recebia e-mails do tipo “eu quero comprar o disco e não acho”.

O retorno do Serginho e a entrada do Bacalhau mexeram na estrutura da banda?

Roger: O disco já estava pronto antes de eles entrarem. Já tínhamos ensaiado as músicas com o Flávio e com o Heraldo, mas antes de gravar, o Rafael (Ramos, produtor) percebeu que não tava rolando muito em termos de convicção da banda. Nós nos damos bem e tudo, não tem nenhum problema. Eu aproveitei que tinha muita vontade de tocar com o Serginho de novo, sabia que ele não estava tocando com ninguém, e o Bacalhau era um cara que nós já conhecíamos.

Você se sente meio Humberto Gessinger, afinal só ficou você da banda… Funciona como banda mesmo?

Roger: É verdade, mas funciona como banda sim. E voltou o Serginho, o que é bom não só pelo estilo dele, mas ele traz as memórias do início. O Mingau só entrou em 99, mas ele também é da época. Só o Bacalhau que é mais novinho, mas ele era fã. Eu sempre evitei ficar trocando de formação, mas acabou acontecendo de ficar só eu e a banda. Esses caras que estão comigo agora são muito parecidos, em espírito, astral, o Mingau com o Maurício… Não que eu tenha procurado “outro Maurício” ou “outro Leospa”, mas tem um astral muito parecido, além do Serginho.

Há alguma previsão para a gravação do disco novo?

Roger: Temos o projeto de fazer alguma coisa, talvez um acústico, mas eu não sei, nem eles me forçam muito, o que é uma das coisas boas da gravadora. Eu tenho vontade de fazer uma banda paralela de cover, como era no começo. Eu gosto muito e tocar cover, e seria só de farra, em São Paulo, perto de casa. Nessa altura do campeonato as viagens me cansam. Tocar eu gosto, mesmo as mesmas músicas de novo, porque elas nunca soam iguais.

Te agrada a idéia de fazer um acústico?

Roger: Para falar a verdade, não. Não é que eu não goste, eu não sei, não fiz, mas tenho a impressão que as minhas músicas não foram feitas para serem assim. Eu não gosto nem do lance, uma coisa de Teatro Municipal, aquele ar aristocrático, esnobe. Porque eu faço rock, que não é para ser sério. Se for sério, tá errado, é uma coisa que foi feita para ser divertida. Não precisa a letra ser engraçada, nem eu nunca tentei ser engraçado exatamente, mas divertido, porque eu acho que nós somos assim. No começo, quando formou a identidade do Ultraje, com o Maurício, eu e o Leospa, os três muito debochados, era difícil fazer a coisa séria. O rock’n’roll tem que ser uma coisa para dançar e divertir. Até pinta um certo recalque de roqueiro, de querer ser levado a sério, que eu não tenho, graças a Deus. Tipo “é só três acordes, mas eu sei tocar Mozart também”. Não, eu não sei. E não é só três acordes, é uma coisa que tem que ter um feeling, um jeito de tocar, que não é qualquer um que consegue. Se a música não mexer com o cara que tá ouvindo, ela não tá funcionando.

O Ultraje sempre foi uma banda engraçada, e na década de 90 veio o Mamonas Assassinas com o rótulo de “engraçadinho”. Nesse período vocês ficaram em tempão sem lançar disco. Tem alguma coisa a ver? Era chato ser “engraçadinho” naquela época?

Roger: Esse “engraçadinho” fica até meio pejorativo, mas nós entendemos, porque todo mundo nos considera assim. Eu ficava chateado quando diziam que os Mamonas eram o Ultraje dos anos 90. Mas depois, passado um tempo, até que tinha muita coisa a ver. Eles às vezes usavam fantasia, nós também avacalhávamos com tudo, éramos debochados. Só que eu acho que nós fazíamos rock e eles faziam de tudo, não tinha compromisso em fazer rock. Eu achava que não era a mesma coisa, era um engraçado diferente, não era palhaçada, tinha um porquê de ser. Nos anos 90 nós ficamos sendo fritados na gravadora e depois não conseguíamos um contrato, porque os caras queriam que nós fizéssemos aquilo: “vocês têm que fazer umas músicas mais engraçadas”. Eu dizia: “eu faço isso aqui, se achar engraçado…”. Na época era o “Nada a Declarar” e o “Monstro de Duas Cabeças”, só tinha essas, porque eu queria lançar o disco só ao vivo, não queria que tivesse músicas inéditas.

No final dos anos 80, muitas bandas começaram a fazer um som próximo da mpb para se manter no mercado. Por que isso aconteceu?

Roger: Faz parte daquele recalque que eu te falei, de querer ser levado a sério, ser igual ao Caetano. Eu sempre fui contra. Não é que eu não goste, tive inclusive influência de Caetano, do Gil, Chico Buarque, principalmente em termos de letra, quando nós passamos por aquele período de ditadura, que tinha que falar as letras usando subterfúgios, e eu gostava disso. Eu gosto, mas é praia deles e eu tenho a minha praia. Eu cheguei até a dar uma declaração que foi mal interpretada na época, falei na inocência: “assim como o Caetano não faz rock eu não faço mpb”. O Caetano entendeu que eu estava falando que ele não sabia fazer, e eu quis dizer que eu fazia o que eu sabia fazer e que outros faziam outra coisa. Eu acho que isso matou o movimento.

Hoje tem muito crítico que fala que na verdade não existiu rock nos anos 80, era tudo mpb…

Roger: Eu não acho. Você pode alegar que era coisa feita no Brasil, se ouvissem lá fora como rock iria soar um pouco diferente, os assuntos eram brasileiros, mas eu nunca achei que nós fazíamos mpb, era rock brasileiro sim.

E também se fala muito que as bandas daquela época eram muito iguais às bandas lá de fora, tipo Barão e Rolling Stones, Paralamas e Police…

Roger: Mas nós não éramos iguais a ninguém. Eu sou um pouco mais velho que essas pessoas, em média seis anos a mais que todo mundo, já ouvia rock há muitos anos e o que eu fazia tinha influência de tudo que eu já tinha ouvido. Eu não tinha um modelo, como o Ramones, Cure ou qualquer coisa assim. O meu modelo era bem mais antigo, eram os Beatles, Stones e tudo que aconteceu naquela época e nos anos 70: Deep Purple, Sabbath e Sex Pistols, Ramones, Police. Eram influências realmente.

O que você acha de muitas bandas dos anos 80 voltando a aparecer na mídia, sendo que o Ultraje sempre aparece menos?

Roger: Eu fico meio chateado às vezes, de não lembrarem, mas parece que é uma espécie de hábito. Normalmente são os Paralamas, Legião, agora o Capital, e os Titãs. Parece que usando essas três (o Capital foi agora, depois do acústico) fala-se de todo mundo, mas no fundo eu sei que lembram, sim, que nós tivemos nossa importância. O “Nós Vamos Invadir Sua Praia” foi considerado por vários veículos como o melhor disco de rock nacional do século, e eu fiquei supercontente. Na Folha também, numa votação das dez músicas do século, o único rock que entrou foi “Inútil”, em décimo lugar. Mas claro que eu fico pensando, por que sempre essas três bandas? E esquecem de uma série de outras coisas: Léo Jaime, Lobão, Lulu Santos, que ainda ta aí, é um cara genial, mas quando falam nos anos 80 é Titãs, Paralamas e Legião.

Como foi a experiência de posar nu para uma revista gay? Foi por causa da grana? Você ficou rico?

Roger: Sem dúvida que foi por causa da grana. Rico eu não fiquei, mas foi uma bela grana, foi o maior cachê pago até então. Pintou a oferta, ligaram lá no escritório e eu falei: quanto é? Era uma coisa que eu já tinha feito, de freqüentar praia de naturismo e tinha a música “Pelado”.

Você faria hoje de novo?

Roger: Hoje ia ser difícil eu ficar de pau duro, porque é uma pressão fudida, os caras fotografando, e eu não tomei viagra nem nada. E depois que fica duro tem que ficar segurando, enquanto os caras falam “aí, desse lado, agora”. Eu achei tudo engraçado. Só eu teria a cara de pau de fazer, combina com o que eu fiz. E o fato de ser uma revista gay não me incomoda. Não tenho nenhuma dúvida a meu respeito, até fiz aquela música “Eu Gosto é de Mulher” na época por causa disso. Porque o cara falar que não é gay, ele é retrógrado, reacionário? Se falar que é gay é moderno?

Sobre direitos autorais, dá para viver deles?

Roger: É muito pouco, em comparação com o que arrecada. Nós vemos toda hora tocar música em programa de TV, e depois não vem o dinheiro. Quando vem você nunca tem certeza do que veio e o que não veio. Você sabe que fez 40 shows e vem grana de três, quatro shows. Então todo mês pinga um pouquinho, mas se eu tivesse que viver disso, tava fudido. É mais o show mesmo, porque a vendagem do disco é outra coisa que é pouco também. Além de pagar pouco como percentual, não vende tanto como vende lá fora. Comparativamente, um disco como “Thriller”, do Michael Jackson, que tinha umas cinco músicas na parada, deixou o cara rico, o “Nós Vamos Invadir Sua Praia” tinha nove músicas na parada. Com um disco desse era para eu estar “godzilionário”.

Que fim levou aquela acusação de estupro, que acabou virando música?

Roger: A mãe da menina tentou me acusar de estupro, que envolve violência, e aí não tinha como me acusar disso. Aí mudou para sedução, que seria prometer alguma coisa em troca de sexo, e também não pode ser, e eu acabei sendo julgado por corrupção de menores, o que também não dava para ser e fui absolvido. O problema é que saiu no Jornal Nacional o cara falando: “Roger acusado de estupro”, e quatro anos depois, quando eu fui absolvido, saiu um tijolinho de 2 x 2 no jornal.

Mas qual foi a origem dessa história?

Roger: A menina era minha fã durante anos, ela própria depôs a meu favor no tribunal. É que ela e umas amigas passaram a noite no hotel, e eu tava superpreocupado, falava: “pô, vocês são menores, vão pra casa”. Mas elas diziam: “vamos ficar aqui, minha mãe não liga”, e ficaram lá até amanhecer, três foram embora e ela ficou, dormiu lá. Mas não rolou nada. Depois a mãe dela quis ganhar uma grana em cima de mim, fez um teatro gigantesco. O pai da menina deu uma declaração a meu favor na Veja, na época, a família ficou super envergonhada.

Como você vê a música “Inútil”, agora que a “gente já sabemos escolher presidente” e “a gente joga bola e consegue ganhar”?

Roger: Não sei se sabe, não…

Pelo menos Copa, nós já ganhamos duas…

Roger: O Lula é bom como oposição, mas é até bom ele ter sido eleito, para o pessoal ver como é que é. Ele tá dando continuidade, talvez não com a mesma competência, mas não se pode saber isso agora. Não tem inflação, mas tá tudo travado. Tem uma série de projetos que eu acho bobos, como o Fome Zero, é um negócio meio paternalista, acho que tem que dar condições, mesmo que demore. Na época do “Inútil” nós vivíamos a ditadura, em 82 tínhamos perdido a Copa, quando o futebol era o único gostinho que nós tínhamos, não podia escolher nem o prefeito, tinha a censura.

Qual é a tua relação com as bandas mais novas hoje em dia? Tem até um tributo ao Ultraje para sair…

Roger: Eu curti pra caramba o tributo, me surpreendeu, não só por vaidade, mas por eles terem feito arranjos diferentes. Eu já ouvi metade, que o cara da Monstro (gravadora que vai lançar o tributo) me mandou, e ele falando da movimentação que teve, dava pra fazer dois CDs, porque todo mundo queria entrar. Mas eu tô meio afastado de ver bandas novas, eu ouço quando os caras me mandam demos, mas elas são quase sempre são muito fracas. Mas um motivo por estas do tributo terem me surpreendido, são bandas não atreladas a rótulos que estão dando grana.

Como seria o Ultraje se começasse hoje?

Roger: Eu falava há uns tempos atrás que se nós tivéssemos começado nos anos 90, seríamos os Raimundos, tinha aquele mesmo tipo de deboche, só que influenciado por coisas mais pesadas. Mas hoje em dia, é difícil dizer. O que falta muito na moçada é que eles têm pouco conhecimento de rock. Eles conhecem, sei lá, do Sepultura para cá, e é pouco, não custa nada saber do resto.

Mas como você disse, na sua época também poucas eram as bandas que conheciam as coisas mais antigas…

Roger: Talvez não é que não conhecessem, mas eles gostavam mais de umas coisas mais modernas. É difícil saber como eu seria se tivesse vinte e poucos anos hoje, mas talvez fosse a mesma coisa. Uma coisa que é diferente que me afetou muito naquela época foi ter vivido a ditadura e hoje em dia não é preciso ter aquela obrigação moral que todos os artistas tinham. Hoje você pode ser mais alegre, falar daquilo que é para ser o rock: mulheres, baladas, até o que eu tentei um pouco no “Invisíveis” tirar esse peso de falar de política. As pessoas falam “você tem que falar do escândalo dos anões da previdência”. Não, não precisa, hoje em dia passa na televisão, é só ligar.

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