O Rock Como Ele é

O segundo passo

“Mal Nenhum”, parceria com Lobão, se transformaria em uma das suas preferidas. Não sabia por qual razão, mas ali, em janeiro de 1985, só ele curtiu. As outras milhares de cabeças saculejantes preferiam as mais conhecidas do Barão Vermelho.

Estava criando o hábito de ir para a cama achando que o dia seguinte seria melhor que o que passou. Uma perspectiva que parecia otimista, mas representava o fracasso de um dia pouco produtivo. E um após o outro fazia daquilo uma terrível constatação diária de que algo deveria mudar, mas ele não sabia como. Por isso naquela noite encafifou-se da auto-análise. Tinha ouvido desde jovem que, para corrigir um erro, o primeiro passo era reconhecer a existência dele. Mas nunca tinham lhe ensinado qual seria o segundo. Talvez por isso mesmo tivesse estacado, e era o que o perturbava naquela noite, bem na hora de dormir.

Tinha jurado que iria viver dez anos à mil, em vez de mil anos à dez. Havia aprendido a frase através das ondas do rádio da Fluminense FM, a Maldita. Era a letra de uma das músicas de Lobão. Tinha decidido, desde então, que em qualquer que fosse a área de atuação, seria intenso. Mesmo que, para tanto, fosse por um curto período. Durante muito tempo, meio sem saber, agiu assim. Hoje, enquanto buscava uma simples saída para o dia seguinte, já não tinha mais certeza de nada. Daí a lembrança da música e da promessa. Decidiu, então, que as respostas poderiam estar – como sempre – no rock. Foi assim que, súbito, se viu dirigindo até o point rock da cidade.

Sabia que não poderia causar mal nenhum. A não ser a ele mesmo. Essa outra lição aprendeu com Cazuza, quando a música foi tocada pela primeira vez em pleno Rock In Rio, primeira edição. “Mal Nenhum”, parceria com Lobão, se transformaria em uma das suas preferidas. Não sabia por qual razão, mas ali, em janeiro de 1985, só ele curtiu. As outras milhares de cabeças saculejantes preferiam as mais conhecidas do Barão Vermelho. Pensava nisso enquanto a madrugada suave do inverno carioca gelava aquela espelunca com cheiro de bebida encardida por todos os cantos. Continuava pensando que o dia de amanhã seria melhor que o de hoje, embora um, à rigor, já tivesse dado lugar ao outro.

A noite tinha acabado feito gim. A espuma branca lhe varrendo os pés era a evidência mais clara de que precisava ir embora. Quase viu o grande poeta de sua geração escrevendo os versos de “Dolorosa” bem ali na sua frente. Não que fosse o único na segunda quadra depois da praia; havia outros sem rumo. A cara cheia e o peito vazio. Certamente um vazio de amor, nos pouco conhecidos versos do C-47. Precisava dar o segundo passo, mas, naquele momento, estava grudado na cadeira bamba daquele ambiente a essa altura devastado por angústias travestidas de gargalhadas bêbadas por todos os lados. Acreditava que o dia seguinte seria melhor.

Acordou com um sol pelo rosto. Na garganta, um gosto de fim. Mesmo atrasado para o trabalho, resolveu se hidratar rapidamente no chuveiro. A garrafa d’água gelada não foi o suficiente para tirar o gosto de areia da boca, por isso entrou na condução com uma lata de refrigerante escorregando pela mão. Não percebeu que se vestira mal, o que só iria piorar sua amarrotada imagem na firma de contabilidade de onde tirava o sustento. Derrubado pela ressaca, tinha a certeza que aquele dia seria pior que o anterior. Às avessas, havia dado o passo para quebrar aquela rotina pseudo-otimista. Ao menos até a hora de dormir chegar.

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