AC/DC
Culto de um idioma universal
Diante de 70 mil fãs, boa parte deles com chifrinhos na cabeça, grupo faz espetáculo tecnicamente impecável com repertório “diabólico” que resume à perfeição o apelo ao rock. Cobertura do show do Morumbi, em São Paulo, em 27 de novembro, para a Billboard número 3, de dezembro de 2009. Foto (da turnê internacional): Reprodução/Internet
Nas cercanias do estádio, o item mais vendido pelos ambulantes naquela tarde/noite calorenta de primavera não foi a capa de chuva (que passou rapidamente duas horas antes do show) ou a cerveja gelada, mas uma tiara de plástico coroada por um par de chifrinhos vermelhos que piscavam sem parar. Custava R$ lá fora, ou R$ 10, dentro do Morumbi. Era a reprodução do fiel do acessório ostentado por Angus Young na capa do álbum “Highway to Hell”, lançado há trinta anos e usado também pelo próprio guitarrista na abertura do bis de um dos espetáculos mais esperados no Brasil em 2009
O início é estonteante. Um desenho animado mostra Angus conduzindo uma locomotiva desgovernada que subitamente se materializa em dimensões assustadoras e só freia no centro do palco, esfumaçante e com explosões de arrepiar, dividindo o telão gigante em duas partes. A partir daí o estádio se transforma em caldeirão. Angus inicia o show com o uniforme ginasiano verde, em vez do tradicional azul ou do grená quem tem usado desde o começo da “Black Ice World Tour”, em outubro do ano passado. Junto com Brian Johnson, com os seus jeans surrados e o boné de caminhoneiro, evolui por uma passarela de uns 50 metros no meio do público, durante “Rock N Roll Train”.
O clima de apreensão causado pelo encantamento da platéia é quebrado pelo vocalista bronco Brian Johnson, que traduz o conceito do AC/DC ao se desculpar por não saber falar “brasileiro”, e dizer que, sim, fala bem o “rock’n’roll”. Os 70 mil fãs de várias gerações que lotam o estádio, magnetizados, entendem perfeitamente que o vocalista só saiba dizer o básico “obrigado”. Clássico dos clássicos, “Back In Black, a terceira, é conforto garantido para quem sabe o valor de um riff fadado a atravessar incólume a história do rock. Johnson anuncia o blues “The Jack” como uma música sobre uma mulher sórdida, mas o telão mostra imagens de garotas de todas as idades da platéia, com uma coisa em comum: uma doce expressão de plena felicidade. É durante essa música que, na única vez em que deixa a guitarra de lado, o gaiato Angus faz o strip-tease, mostrando as ceroulas com o logo da banda.
O telão bipartido mostra que as bombas de “War Machine”, uma das quatro do último disco, são guitarras lançadas de um avião, no meio de um deserto onde o tanque do AC/DC é comandado pelas mesmas gatinhas sacanas que duelam com Angus no trem desgovernado do início. Coadjuvantes de luxo, Cliff Williams e Malcolm Young passam a maior parte do tempo encostados na parede de amplificadores que adorna a bateria do técnico e preciso Phil Rudd; só quando vão à frente fazer os backing vocals é que se movem. A dupla garante a base pesada que libera Angus para solar e se divertir.
Em “Let There Be Rock”, enquanto o telão mostra imagens da banda ao longo dos anos, o baixinho faz o tradicional solo que inclui um desfile sobre a passarela até ser erguido, bem no meio do público, numa torre pantográfica, com direito ao estrebucho no piso e a jatos de papel picado disparados para a platéia. Ele some e reaparece sobre a bateria, e a cada gesto, 70 mil braços se erguem em coreografia ensaiada. Aos 54, impressiona ao não subtrair uma nota do número que o consagrou.
Antes, os mais jovens se surpreenderam com a Rosie gigante de “Whole Lotta Rosie”, que dessa vez simula uma dança, montada na locomotiva. E mesmo quem já tinha visto o AC/DC ao vivo deve ter se espantado com o pique à Usain Bolt do figuraça Brian Johnson, 62 anos, na longa passarela, antes de saltar e gongar o sino que anuncia a sensacional “Hells Bells”. No encerramento de um espetáculo tecnicamente perfeito, depois de quase duas horas se esgoelando, ele impressiona pela voz intacta no final do bis em “For Those About To Rock (We Salute You)”, em meio a disparos de canhões de guerra. Quase tudo como se esperava, quase tudo como todos queriam ver. E, ainda sim, impressionante.
PROTEGIDOS PELOS DEUSES DO ROCK
Clima agradável ajudou, mas a volta pra casa foi infernal
Se chegar ao estádio do Morumbi, por conta de ônibus lotados, trânsito pesado e pancadas de chuva, foi problema, a volta pra casa se transformou numa verdadeira odisséia. Poucos coletivos circulavam na região, e quase tosos os taxistas tentavam cobrar valores extorsivos. O público era obrigado a andar quilômetros pra arriscar uma maneira de ir embora para casa. Graças aos deuses do rock, a chuva fina não piorou a situação.
Aguaceiro rolou cerca de duas horas antes de os shows começarem. O público dentro do estádio não arredou o pé das posições conquistadas (em muitos casos, já na véspera: teve até barracas de camping). O volume do som que rolava no PA foi aumentado justamente quando começou a clássica “Iron Man”, do Black Sabbath, que fez o público erguer os braços como num ensaio para o show. O clima refrescante que sucedeu a tempestade criou a vibe ideal para aquele começo de noite.
Esperto, Nasi, ex-vocalista do Ira!, mandou um set basicamente com covers do rock nacional (de Raul Seixas a Plebe Rude) e internacional, na óbvia “Should I Stay Or Should I Go”, do Clash. Em “Mosca na Sopa”, ele se proclamou a própria, porque veio para “incomodar os emos e os sertanejos”. Com “Sociedade Alternativa”, encerrou um show de menos de meia hora com a participação de Andreas “Sepultura” Kisser. Tão rápido que nem foi vaiado.
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