O Rock Como Ele é

A renúncia

Gostava mesmo era de rock. Aquele clássico, dos anos 50, que lhe fora passado pelo pai. Com Johnny Cash nos fones, parecia totalmente démodé.

Passou a colecionar as palavras que não conhecia. Na medida em que ia descobrindo, anotava em pedaços de papel. Nem precisava. A atenção era tanta que acabava guardando de memória mesmo. Tinha decido que seria escritor. Jornalista mal formado em universidade particular, acabou sobrando para ele o trabalho pesado de acompanhar a campanha eleitoral de um político de segundo escalão. Mesmo assim, conseguia, entre uma atualização e outra, escrever uns contos. Ou crônicas. Na verdade nem sabia como chamar direito o fruto de sua produção. Sem falar que gostava mesmo era de rock. Aquele clássico, dos anos 50, que lhe fora passado pelo pai. Com Johnny Cash nos fones, parecia totalmente démodé.

Morria de medo dos sonhos dele. Temia que aquele que escolheu para viver ao seu lado se distraísse tanto pensando em viver do que realmente gostava a ponto de largar tudo. Nascera com a vocação feminina da proteção familiar e agia assim antes mesmo de consumar o enlace. Desde o primeiro encontro, na verdade. Era criticada por todos por tolher os anseios do rapaz, mas ela é que sabia das dificuldades do dia-a-dia. Quem iria pagar as contas? Não que dependesse do jovem – tinha seu próprio ganha pão -, mas sonhava e trabalhava para dividir o resto de seus dias ao lado de quem amava. E nada poderia atrapalhar. Que sonhos juvenis, que nada, pensava. Para ela, o rock deveria ser só uma lembrança das festas da juventude.

Era repórter. E dos bons. De modo que descrevia fatos com precisão. Sabia como poucos ver uma cena e narrar tudo de modo a dar ao leitor a sensação exata de como tudo ocorrera. Queria – por isso mesmo – fugir da correção e viajar um pouco. Uma vez até se aproveitou de dois colegas de trabalho que se encontravam diariamente na condução para transformá-los em personagens de suas histórias. Os colegas adoraram. Teriam dito que gostaram mesmo que não tivesse ficado legal para incentivar o companheiro de trabalho, mas não foi preciso. Nessas horas achava que tinha mesmo jeito para a coisa e pensava – claro – em largar aquela panacéia de notinhas virtuais a cada segundo para publicar seus próprios livros. Como Elvis, queria deixar de dirigir seu caminhão.

Às vezes se sentia traída ao ler aquilo que o amado escrevia. Via, nos personagens criados por ele, a reprodução de algum acontecimento que ele teria retirado de suas próprias experiências. Não se cansava de questionar e ter sempre a mesma resposta. Era tudo ficção. Mas, por outro lado, não se via ela própria descrita num dos contos do rapaz. Como poder ser amada por um escritor que não lhe tivesse escrito uma única linha? Sentia ciúmes e por isso mesmo achava que de escritor ele, de fato, não tinha nada. Com o olhar para si mesma típico das mulheres, se viu numa disputa entre a escrita de quem escolhera para amar e ela própria. Parecia a esposa de um astro do rock enciumada com a turnê do marido e o assédio das groupies.

Estava nervoso naquela noite em que antes, durante a madrugada, a primavera chegara soprada pelo vento. Não sabia se muita gente compareceria àquela tarde de autógrafos – que, diga-se, achava cafona. Não sabia se deveria ir. Queria prestigiar aquele que um dia amou, mas, hoje casada, tinha medo de uma súbita recaída. Foi preciso a perda para ele finalizar subitamente aquele belo livro de contos de amor – tudo ficção. Assim que chegou, discreta, foi direto para o fim da fila. Satisfeito com tanta gente circulando e temperado com o uísque que bebera para segurar a pressão, mal se deu conta de quem se aproximava da mesa, depois de uma senhora com dificuldade para se locomover dar meia volta. O seu nome, por favor?

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