O Rock Como Ele é

A tranca

Não sabia ao certo se aquilo teria realmente algum sentido, mas sempre se lembrava da música do Stellabella quando pensava no assunto.

Tinha o hábito de, ao fechar a porta de casa, dar duas voltas na chave tetra a fim de evitar a chegada de visitantes inconvenientes. Não que o local escolhido para a moradia fosse de total insegurança, mas, se havia ali uma segunda tranca, deixá-la aberta seria dar mole para o azar. Pensava assim ao sair de casa, embora não fosse supersticioso. Só não usava a chave tetra quando recebia hóspedes naquela acanhada quitinete da Rua das Laranjeiras, já que o molho com as cópias reservas não incluía justamente a tetra. Uma medida que contribuía para a sobrevivência financeira em tempos de severidade econômica implantada pelos governantes.

O artifício da tranca suplementar também trazia de volta memórias de um tempo em que cutia a vida adoidado. Foi ali, naquele espaço limitado, herdado da família, que teve grandes momentos com uma pequena que o havia conquistado pra valer. Curiosamente, a conheceu através das redes sociais da internet, apesar de hoje não se lembrar mais se era Facebook, orkut ou as inefáveis salas de bate papo – ou, quem sabe, tudo isso junto. Não demorou muito para resgatar a moça da cidade do interior em que morava para habitar aqueles exíguos metros quadrados do edifício conhecido como “pombal”, dada a grande quantidade de moradores por andar.

No começo, uma maravilha. Não que a amada fosse um jeca tatu, mas tudo era novidade. O sotaque, para ele, irresistível. A quitinete, para ela, o paraíso. Não sabia ao certo se aquilo teria realmente algum sentido, mas sempre se lembrava da música do Stellabella quando pensava no assunto. O trio era um dos melhores entre as novas bandas da cidade, mas, por conta das agruras do novo mercado musical, sem saber para onde ir na imensidão da internet, ainda não havia conquistado o espaço que merecia. Ao menos era essa a opinião do admirador de última hora, que acabou tomando emprestada da banda a trilha sonora de seu romance incidental.

Não passou muito tempo para que a cidade, antes grande para a moça do interior, se tornasse pequenina. Logo ela se enraizou por toda a metrópole como se fosse o bairro de estrada de terra batida onde fora criada. E conheceu gente, muita gente. Começou a trocar o jeito de falar da roça pelo sotaque puxado típico das praias da zona sul. Mudou tanto que não era mais a pequena que fora trazida para a cidade grande depois de um breve relacionamento virtual. Tinha, já, outros varões ao redor, e a saleta do número 336 ficou pequena. Sem pestanejar ele mostrou o caminho da porta da rua, que era, mais do que nunca, a serventia da casa. Não houve tempo nem para recuperar o molho de chaves.

Foi tudo tão rápido que, a bem da verdade, não chegou a ser resolvido. Descobriu com muito pesar que as coisas do coração não se resolvem de um segundo para o outro, muito menos sem, no mínimo, uma longa conversa. Assim, imaginava vê-la entrar por aquela porta e sentir, de novo, os pés no chão. Achava que poderia voltar a ter a certeza que ela seria a resposta que sempre procurou para acreditar quer a vida tem algum sentido. Por isso, às vezes, deixava de lado o hábito de, ao fechar a porta de casa, usar a tranca da chave tetra a fim de evitar a chegada de visitantes inconvenientes. Porque uma única visita poderia ser a mais interessante de todas.

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