No Mundo do Rock

Cidadão verdade

Fazendo música em cima de suas intuições, em “U-huuu!” Fernando Catatau leva o Cidadão Instigado a consolidar um trabalho peculiar e sem precedentes no pop nacional. Fotos: Patrícia Araújo/Divulgação (1 e 3) e Reprodução/Internet.

Fernando Catatau cercado por sua trupe: Kalil Alaia (técnico de som e efeitos), Clayton Martin (bateria e programações) e Regis Damasceno (guitarras), acima; e Rian Batista (baixo) e Dustan Gallas (teclado), em baixo, um de cada lado

Fernando Catatau cercado por sua trupe: Kalil Alaia (técnico de som e efeitos), Clayton Martin (bateria e programações) e Regis Damasceno (guitarras), acima; e Rian Batista (baixo) e Dustan Gallas (teclado), em baixo, um de cada lado

Fernando Catatau é o cara. O guitarrista (como gosta de ser chamado) fechou 2009 como um dos nomes mais influentes da nova música pop brasileira. Participou dos discos de Otto e Céu, ambos incensados pela crônica musical, e produziu o de Arnaldo Antunes, “Iê iê iê”, de sotaque retrô. O seu feito mais importante, no entanto, foi o lançamento do enigmático “U-huuu!”, terceiro álbum de sua própria banda, o Cidadão Instigado, um dos trabalhos mais originais de que se tem notícia no universo da música brasileira.

Até Caetano Veloso, o homem que dá a palavra final na tradicional MPB, andou rasgando elogios a este cearense que foi para São Paulo se arriscar na carreira musical. “U-huuu!”, que sucede o não menos estranho “Método Túfo de Experiências”, é o tipo de disco que não deixa o ouvinte seguro de nada, mas o faz parar para pensar o que é aquilo, dúvida que não se dissipa quando o CD para de girar. Ainda assim, se mostra interessante para todas as tribos, e é aí que está o seu grande segredo, que Catatau não hesita em cravar: “me esforço para ser o mais verdadeiro possível”.

Nessa entrevista, feita por e-mail, tentamos destrinchar o pensamento vivo de Fernando Catatau para descobrir o que o motiva a fazer músicas que prezam pela estranheza, mas, mesmo assim, atraentes. Tendo sempre a verdade e a espontaneidade como trunfos, ele explica o fascínio pela música brega (que chama de romântica), como encheu o disco de teclados e as diferenças entre trabalhar em estúdio e tocar ao vivo. Só se esquivou de falar sobre quem organiza os festivais independentes no Brasil, aos quais já chamou de “máfia”, resultando, infelizmente, em seu exílio no circuito. Mas um dia ele solta o verbo.

Rock em Geral: Por que o título “Uhuuu!” para o disco? Tem a ver com a expressão usada originalmente por surfistas?

Fernando Catatau: Na real é uma expressão que sempre uso com meus grandes amigos que moram em Fortaleza. Uhuuu! pra mim tem um significado muito forte, é como se fosse um grito de guerra às coisas boas e tem total a ver com o surf. Fui body-boarder há muito tempo e por muito tempo.

REG: Para lançar este disco você teve um projeto aprovado dentro do Projeto Pixinguinha. Explique como o processo foi feito:

Catatau: Quem nos inscreveu foram nossas produtoras (Lívia e Priscilla). Acho que se elas não tivessem feito isso o disco teria saído como sempre foi, do meu bolso. O bom é que tivemos um suporte para gravar o disco, com tempo e pagando todo mundo como tem que ser, até porque sempre gravamos em fita, e o processo é muito caro. Achei muito legal ter esse apoio, pois acho que um disco, para ser bom, tem que ser trabalhado com estrutura.

REG: Você nunca foi um cantor excepcional, mas também pareceu não se esforçar para melhorar nesse disco. É sua intenção cantar da maneira como você faz, nem sempre com a voz afinada e explorando o sotaque carregado do Nordeste?

Catatau: Eu me esforço para ser o mais verdadeiro possível. Acho que meu sotaque é minha identidade e sou muito orgulhoso disso, e se sou desafinado é porque tenho minhas limitações. Sou bem feliz com o caminho que consegui até aqui. Acho que meu jeito de cantar tem muito a ver com a sonoridade da banda e não é nada forçado. Tá bom assim.

REG: Antes você cantava de um jeito “mais falado”, mas agora parece cantar mesmo. Trabalhou por essa mudança ou as coisas foram acontecendo?

Catatau: Fui aos poucos começando a cantar melodias. Quando comecei o Cidadão, não tinha experiência em cantar, e minha voz sempre foi assim, meio “médio-anasalada” (característica do povo cearense). Mas com o tempo fui mudando meu modo de compor e meu jeito de cantar foi junto. Me esforcei bastante para começar a cantar, até porque as melodias que eu crio não são das mais convencionais, e às vezes exigem técnicas de cantor, coisa que eu não tenho, mas faço do meu jeito.

REG: Num dos shows de lançamento, no Circo Voador, você tocou a íntegra desse disco novo, e num último bis ainda repetiu uma das músicas. Isso quer dizer que esse é seu trabalho definitivo, que supera os feitos anteriormente?

Catatau: Esse é o disco que acabamos de lançar e estamos trabalhando nele. Decidimos tocá-lo na íntegra nos shows de lançamento. Agora já estamos mesclando com músicas antigas. Gosto muito do “Uhuuu!”, mas também dos outros. Acho que nesse disco conseguimos chegar mais num ponto de unir bem esse lado que eu gosto de “canção” com “psicodelia”, tirando os excessos. Acredito numa carreira. Trabalhamos aos poucos, disco a disco. Só no futuro vou conseguir enxergar realmente o que é definitivo para nós. Ainda pretendo gravar muitos discos.

REG: Embora você seja guitarrista de origem, parece ter adotado o teclado como instrumento indispensável neste disco. O que te seduziu nele para ganhar tanto destaque nessa fase?

Catatau: Os teclados que entraram no disco entraram naturalmente. Eu fiquei bem satisfeito com os que foram gravados. Não teve excessos. Na real eu sempre gostei muito de teclados e bem colocados eles fazem a música ficar grandiosa.

REG: A música brega setentista continua como uma grande referência no seu trabalho. Até quando você acha que é possível explorar esta, digamos, tendência no Cidadão Instigado?

Catatau: Acho que temos um trabalho que vai caminhando aos poucos. É engraçado, mas muitas dessas músicas que foram gravadas no “Uhuuu!” são bem antigas. Então é como que a cada disco que lançamos seja um registro de um tempo que passou, com algumas coisas do presente. Tenho muitas composições românticas, outras psicodélicas, umas bem rock. Não faço música explorando estilos, vou de acordo com minhas emoções e enquanto o amor perambular pela minha vida, eu vou com ele, escrevendo várias canções românticas.

REG: O rock progressivo é outra variável dentro da sua música, e nesse disco aparece forte no começo de “O Nada” e em “O Cabeção”, só pra citar duas músicas. Como você mantém isso vivo?

Catatau: Gosto de pensar na música como se fosse uma redação de colégio, que tem começo, meio e fim. Acho que no princípio do Cidadão isso era bem marcado, mas hoje abriu para outros lados também. No rock progressivo, a música vai e não precisa voltar. Gosto disso. É uma quebra do padrão pop de refrão. Mas também gosto desse padrão pop que você fica a música inteira esperando para que o refrão reapareça para cantar junto com todo mundo. O legal é ter todas as opções e se utilizar de tudo.

"Não faço música explorando estilos, vou de acordo com minhas emoções e enquanto o amor perambular pela minha vida, eu vou com ele, escrevendo várias canções românticas"

"Não faço música explorando estilos, vou de acordo com minhas emoções e enquanto o amor perambular pela minha vida, eu vou com ele, escrevendo várias canções românticas"

REG: No passado você citou Jimi Hendrix e Black Sabbath como influências, mas dessa vez parece que a mpb dos anos 70 bateu mais forte. É isso mesmo?

Catatau: Eu não acho, não. Jimi Hendrix, Black Sabbath, Santana e King Crimson são minhas referências eternas. Não consigo perceber essa mpb dos anos 70 nesse disco. Acho até que caminho mais para os 80, que são referências fortes na minha vida, como Eddie Grant, The Cure… Minha veia é de rockeiro nordestino que se emociona ouvindo Pink Floyd, pede pra tocar Raul e já dançou muito forró.

REG: Esse disco só parece ser possível graças a experimentos que você desenvolveu em estúdio. É difícil reproduzir essas músicas ao vivo? Ou você parte do princípio que no palco deve fazer de uma forma diferente mesmo?

Catatau: Desde o lançamento do “Método Túfo…”, em 2005, nós já vínhamos testando músicas que entraram no “Uhuuu!”. Sempre que fazemos um disco eu tenho a maior preocupação de gravar algo que possamos tocar ao vivo. Mas estúdio e ao vivo são dois mundos que têm que ser explorados da maneira certa. Adoro entrar no estúdio e experimentar várias coisas, mas nosso laboratório mesmo é o palco. No estúdio é como um daqueles lugares que você vai para bater foto. No fim tá ali a fotinha de uma época que você vai olhar lá na frente e dizer: caramba, eu era bem melhor. Ou, melhorei bastante. Resumindo, são dois lugares massa de se estar bem acompanhado.

REG: Hoje você se considera tanto produtor como músico? Ou é mais uma coisa que outra?

Catatau: Eu sou guitarrista. É o que mais define o que sou na minha profissão, mas tenho percepção para outras coisas como produção, organização e faço isso também. Gosto muito disso tudo.

REG: Suas letras, embora realistas e com linguagem simples, têm conteúdo que prima pelo inusitado, como nas frases “pra cada cabeça existirá um piolho espião” ou “eu imagino as bichinhas se entulhando uma a uma numa montanha de pelúcia que de tão fofa foi fedendo”. De uma forma geral, como você desenvolveu esse jeito de escrever/compor?

Catatau: Isso é muito de eu ser cearense. Essa história de ir inventando personagens, situações que fogem do real é, às vezes, para deixar as histórias claras, mas de uma forma mais interessante. Todas as minhas letras são baseadas nas experiências que eu vou vivendo, e eu gosto de ser bem direto. Não entendo muito de literatura, mas também sou muito chato comigo mesmo. Gosto de achar as palavras certas para que o dito seja bem dito.

REG: Em algumas letras, como a de “Deus é Uma Viagem”, você altera a sílaba tônica das palavras para fundi-las com a melodia. É coisa estudada ou nasce de um processo prático de cantar e ir ajustando tudo?

Catatau: É o ajuste mesmo. Na música a letra tem que ir se encaixando com a música em total harmonia. Uma é total dependente da outra, pelo menos nas músicas que eu faço.

REG: Curiosamente a música “Escolher Pra Que?”, de onde saiu o título do disco, é a única que não tem letra de sua autoria. Tem explicação?

Catatau: Essa é uma letra muito antiga de um amigo (Danilo Guilherme). Já tinha feito vários arranjos para ela em todo esse tempo que a banda existe e nunca tinha dado certo. Daí, há algum tempo, a gente vinha tocando ela nos shows e como a música que fiz resumia muito bem o espírito que estávamos vivendo, rolou de gravarmos ela, mas foi naturalmente que deu certo assim.

REG: Em “O Nada” você parece ser irônico ao pedir que as portas das casas sejam abertas para os ladrões entrarem. Pode explicar melhor o que quis dizer?

Catatau: Essa letra é simples. Ela fala de um lance que é muito delicado para o ser humano, que é o apego pelas coisas materiais. Penso que é importante pensar que a qualquer momento você pode não ter mais nada, pois a vida dá muitas voltas e acho que é preciso saber lidar com isso para ter forças para recomeçar do zero.

REG: É uma percepção correta concluir que a música do Cidadão Instigado preza pela estranheza?

Catatau: Prezo muito pela verdade, seja ela qual for.

REG: Se você recebesse esse disco para ouvir, como o definiria, em poucas palavras?

Catatau: Me desculpe, mas não consigo falar de algo que é tão pessoal em poucas palavras. Nunca consegui ouvir nenhum disco meu olhando de fora, e acho que nunca vou conseguir. Fico pensando em tudo. Enfim…

REG: Você produziu o disco do Arnaldo Antunes e outro dia foi elogiado pelo Caetano. Que tipo de mudança isso pode representar na sua carreira?

Catatau: Não sei exatamente, mas é bom saber que seu trabalho está sendo reconhecido e principalmente estando fiel à sua origem. Gosto muito do que faço e sou apaixonado por música, e por isso estou nessa história até hoje. Penso em música e instrumento o dia todo. Fico feliz de hoje trabalhar e estar perto dos meus ídolos.

REG: Conte como foi feito o contato entre você e o Arnaldo Antunes, e como rolou de um trabalhar no disco do outro:

Catatau: Eu já tinha encontrado o Arnaldo algumas vezes, e sempre falávamos um pouco. Tinha um link pelo Marcelo Jeneci, que tocou no Cidadão e hoje toca com ele. Quando o Arnaldo decidiu gravar esse disco com base no iêiêiê, resolveu me chamar pois já conhecia o que eu fazia com o Cidadão. A participação dele no nosso disco foi muito natural. Primeiro tinha “O Cabeção”, que eu queria que ele colocasse uma voz bem grave representando o título da música. Mas no meio das gravações nós decidimos abolir o solo da música “Doido”, que já tinha oito anos e não se resolvia, aí pedi para o Arnaldo improvisar como se fossem as vozes que uma pessoa à beira da loucura ouve. E ficou como ficou, massa!

REG: Esse disco parece representar uma “virada” na sua carreira. O que você imagina para o futuro do Cidadão Instigado?

Catatau: Espero continuar nesse caminho. Acredito na homeopatia musical. Temos 12 anos de banda e sempre acreditando que as coisas sólidas se conquistam aos poucos. Espero continuar nesse rumo fazendo música e tocando com meus grandes amigos.

"Todas as minhas letras são baseadas nas experiências que eu vou vivendo, gosto de ser bem direto"

"Todas as minhas letras são baseadas nas experiências que eu vou vivendo, gosto de ser bem direto"

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Comentários enviados

Apenas 1 comentários nesse texto.
  1. José Henrique em fevereiro 23, 2010 às 4:03
    #1

    Muito boa a entrevista.
    Mas, deixa o Mano Caetano de fora dessa. O cara elogia Sandy, Cláudia leite, Tiririca…
    Enfim, o ótimo Cidadão Instigado/Fernando Catatau não precisa dele pra nada.
    PS: Os caras fizeram um show foda aqui no Rec Beat.

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