Fazendo História

Filipetas e filepeteiros transformam-se em instrumentos fundamentais/determinantes para o sucesso de um evento

Matéria sobre a movimentação gerada pelas filipetas. Publicada na edição número 16 da Revista Outracoisa, de setembro de 2006.

É só você parar em frente a uma casa de shows ou qualquer outro ponto de encontro da juventude, numa cidade com o mínimo de agitação cultural, que eles aparecem para entregar um panfleto e te convencer a ir a uma festa, show ou outro evento “sensacional”. Estamos falando dos entregadores de filipetas, ou, para usar o termo correto, dos “divulgadores”. Você pode até pensar que o trabalho é uma atividade menor, mas entregar filipetas (ou flyers) também faz a economia girar: ganham o designer que cria a arte, as gráficas que as imprimem, os produtores que têm a freqüência do público garantida/fortalecida, e, claro, os divulgadores, cuja maioria nem precisa de outra atividade para pagar as contas no final do mês. Distribuir filipetas é, sim, um trabalho que traz uma boa remuneração.

Que o diga Matheus Marinho. Ele veio de Brasília para o Rio, começou a divulgar a festa Loud! e acabou trocando a faculdade de direito pela de comunicação. “Consigo viver só divulgando, levo a sério como um trabalho normal. Tenho trabalhos regulares e para outros lugares faço os pontos fixos”, explica, se referindo a locais como cinemas, cafés ou livrarias, onde as filipetas são deixadas naquele montinho para os fregueses pinçarem as que consideram mis interessantes. Mas a ralação é todo santo dia, de sol a sol. “Trabalho da hora que eu acordo até a hora que eu durmo. A Matriz me passa um roteiro fixo, e eu tenho que adequar os outros a partir desse. As outras casas eu faço sozinho, tenho muitos contatos e se estiver atolado de trabalho, tenho equipe reserva, que eu contrato. Ao mesmo tempo em que eu sou coordenado, coordeno outros seis”, diz o praticamente micro-empresário, que já tem até sub-contratados. Em meses de férias, onde o movimento noturno é maior, ele chega a faturar mais de 2 mil reais. “Mas divulgo até pet shop”, admite.

Matheus falava da Casa da Matriz, produtora de eventos que tem uma equipe fixa de divulgadores montada e planejada para atacar os pontos de maior movimento da cidade. Essa equipe é coordenada por Juliana Sansana. “Eu determino para onde e a que horas eles vão, e a quantidade e o tipo de filipetas que vão levar”, explica ela, que procura locais onde ocorram eventos de público semelhante para planejar a distribuição. Uma vez feito o roteiro, ele é passado para os divulgadores, junto com informações sobre o evento, para aumentar o poder de convencimento. Por isso hoje em dia o divulgador tem o discurso na ponta da língua. E Juliana, que também é atriz, dá umas incertas nos locais para ver se o material foi bem distribuído. “A supervisão é sair de bicicleta ou ônibus nos pontos fixos pra ver se a filipetas estão lá e se eles estão entregando nas ruas”, ameaça. Para cada 1500 filipetas o pagamento é, em média, de R$ 40. Ás vezes, no meio da noite ela ainda liga para os distribuidores para modificar o roteiro em função de lugares que estejam mais cheios que o normal. Acontece também de os próprios filipeteiros se comunicarem entre si, com dicas sobre onde a cena está bombando mais. Isso além de contatar os anfitriões das casas de festas, para saber se o lugar encheu ou não. Como o pessoal que distribui as filipetas é sempre o mesmo, acaba que vira conhecido de quem toma conta das entradas e, assim, rola uma espécie de licença para entrar e distribuir material. Nessa profissão, percebe-se, há duas ferramentas imprescindíveis: simpatia e telefone celular.

ARTISTAS EM AÇÃO

Quando não está em cima do palco tocando guitarra no Supercordas, como Giraknob, Felipe de Oliveira circula pela noite com suas filipetas debaixo do braço. Ele trocou um trabalho num escritório de contabilidade pela maratona da divulgação. “Encaro como um emprego como outro qualquer, sou boêmio pra caralho, e isso é uma das partes legais. Posso viajar com a banda sem problema, não acho que eu vá arranjar outro emprego no qual eu consiga me manter e ter as mesmas facilidades”, acredita. Mas também têm as partes ruins. Uma delas é o pouco caso de quem recebe as filipetas ou mesmo uma certa falta de educação e respeito com quem está entregando. E isso pode variar de acordo com o local escolhido para a blitz. “O povo do Baixo Gávea (zona sul e de classe média alta do Rio) trata a gente como se estivéssemos pedindo para engraxar sapato. Já na Lapa (região próxima ao centro da cidade) é uma galera que tá a fim de sair, então está mais propícia a aceitar do que o playboy”, avalia. “Mas (a má educação) a gente releva, você despreza o cara, dá uma risadinha e sai fora”, completa.

Felipe não é o único que faz parte do meio artístico. Juliana, a atriz supervisora, não gosta de rotular, mas acredita que todos são interessados em algum tipo de produção artística, e aproveitam a flexibilidade de horário que a atividade proporciona para encaixar o interesse nas artes. A capixaba Raquel Patrocínio, por exemplo, é uma delas. Ela atua como uma das divulgadoras da Casa da Matriz, mas também é designer e vai prestar vestibular para Cinema esse ano. Além de distribuir, ela coleciona as filipetas. “Lá em Vitória não tinha isso, era só em xerox, então quando vim pra cá comecei a colecionar. As mais queridas são as da Loud!, que eu tenho todas”, orgulha-se. Ela acabou conhecendo outros colecionadores, e como também distribui, volta e meia alguém pede para ela guardar as mais recentes. Para conseguir a filipeta da Loud! número 7 ela teve que juntar muitas para trocar, como nos bons tempos dos álbuns de figurinhas. Raquel também utiliza as filipetas para outros fins. “Muita gente faz colagem ou outras coisas com um flyer, eu mesma já fiz umas prateleiras com flyers da Digital Dubs”, conta. “Ficou tudo verdinho…”.

Apesar de ter passado por problemas com pessoas pouco receptivas, que jogam a filipeta no chão logo após ter recebido, ela já ouviu cantadas de quem não perde a chance de uma boa paquera. “Tem aquele que você dá o flyer e ele pede seu telefone. Eu pergunto: pra que? Tem uma festa pra eu divulgar?”, ri. Figura carimbada entre os divulgadores e freqüentadores de festas é Marcelo Guimarães, o Mirrela, que até já foi desenhado pelos quadrinistas da revista “Mosh”. Formado em comunicação, Mirrela ostenta vistosos dread locks e trabalha no ramo há seis anos. Assim como Matheus, tem trabalhos fixos, e quando a coisa aperta organiza ele próprio os esquemas de divulgação contratando terceiros. “Foi um bico que virou minha profissão, o trabalho principal“, diz. Para ele não tem tempo ruim: “Vou à Lapa, bloco de carnaval na Praça Mauá, Casa Rosa, Posto 9 durante o dia e nas faculdades à noite. Como moro na Ilha, pego oito, dez ônibus por dia”. Embora seja um dos que consegue um bom faturamento, espera voltar a atuar como jornalista.

FILIPETA É POP

O trabalho de divulgação da Casa da Matriz cresceu tanto que uma empresa foi criada para bolar, imprimir e distribuir as filipetas. A filipeta.com.br é uma empreitada de Áureo César Lima, um dos sócios e que acredita já ter inventado cerca de 300 filipetas. Hoje participa da produção gráfica. “Sempre colecionei muito papel, por causa do meu trabalho como designer eu pegava como referência. Quando comecei a trabalhar com evento fui jogando os outros fora, e me concentrei mais em filipeta”. Além das que desenvolveu, ele contabiliza outras duas mil guardadas. “Boa parte já está naqueles fichários de foto, uma outra fica num armário gigante dentro de umas caixas, que eu ainda não consegui organizar”, conta ele, que costuma receber “de presente” coleções de amigos que desistem de juntar as filipetas. Áureo já fez exposições na Loud! e na própria Casa da Matriz.

Flaviana Camargo, por sua vez, decidiu fazer uma exposição permanente dos flyers que juntou durante cerca de 15, 20 anos. Foi assim que junto com as sócias Cláudia e Naraya Pontes montou o Flyer Bar, na Rua Peixoto Gomide, em São Paulo. O estabelecimento é todo decorado com o flyers. “Montei o bar há um ano e três meses, inspirada num café que eu vi em São Francisco. Achei que ficou legal e fiz esse bar com o interior todo revestido com flyers”, conta ela, que acredita ter mais de dez mil guardados, inclusive os repetidos, justamente os que usou na decoração. Além de aproveitar os quitutes e bebidas do bar (que serve 50 tipos de cachaças) os freqüentadores se divertem lembrando de eventos que compareceram. “Aparece muita gente que coleciona e fica olhando para a parede, vendo quais tem em casa”, observa, revelando mais um atrativo do Flyer Bar.

Se quem distribui filipetas tem jeito de artista, e muitos têm grandes coleções, Fábio de Carvalho fundiu mais ou menos as duas coisas. No início, ele era só um divulgador, na verdade um dos pioneiros, e depois se transformou no DJ Fábio Flyer. Na mudança de área, resolveu materializar parte de sua coleção de filipetas no próprio corpo, tatuando a imagem de duas das festas mais famosas no Rio. Na perna esquerda, a X-Demente; na direita, a Loud!. Quando fazia a distribuição, Fábio foi um dos primeiros a organizar roteiros, montar equipes e a negociar melhores pagamentos. “Naquele tempo era mais fácil conseguir mais, depois muita gente começou a fazer divulgação, aí o valor pago começou a cair”, lamenta, justificando o porquê de ter abandonado o barco. Da coleção de filipetas ele também se desfez. “Tive que escolher entre a coleção de flyers e de discos, e fiquei com os discos por causa do trabalho. Hoje em dia nem vejo tanta graça assim nas imagens”, diz ele, que, obviamente, ainda guarda duas delas. Pra sempre.

O CAMINHO DAS FILIPETAS

Na década de 50, um capitão do exército chamado Filipe foi o protagonista de um escândalo da emissão de títulos financeiros falsos no Rio de Janeiro. Desde então qualquer papelzinho distribuído pela cidade passou a ser chamado de “filipeta”. Mais tarde, o termo ganhou um sinônimo, flyer, quem em inglês significa “voador”. Com o crescimento e a diversificação de shows e festas, a distribuição dessas filipetas tem caráter obrigatório para ajudar na promoção do evento. Investigamos o caminho feito por esses panfletinhos mágicos e de vida curta.

A filipeta nasce da cabeça de um designer gráfico como Áureo, que a partir das características do evento bola uma arte que ajude a convencer o público a comparecer. O desenho feito em computador vai parar na gráfica, que imprime, por exemplo, dez mil cópias. Como também é colecionador, Áureo já retira uma para guardar. Cerca de 1500 delas vão parar na mão de divulgadores como Raquel. Como ela também coleciona, fica com uma, e pode até transformá-la em matéria prima para outro trabalho artístico. As demais serão entregues pela noite nos pontos de encontro da juventude. Se quem recebeu jogar a filipeta no chão, ela vai ser recolhida pela Comlurb (Companhia de Limpeza Urbana) e se isso se repetir muitas vezes no mesmo lugar e alguém der queixa, a produção do evento pode até pagar uma pesada multa. Não é à toa que em geral as filipetas vêm com a frase “Mantenha sua cidade limpa”.

Mas se quem recebeu guardar para conseguir o desconto em geral oferecido, ela vai ficar na portaria da casa onde o evento se realizará, servirá para um eventual controle estatístico, e vai para a reciclagem da mesma Comlurb. Ciclo fechado. Se ela for parar na mão de um colecionador, poderá aparecer entre os participantes de uma das comunidades criadas no orkut. Se for alguém com o perfil do DJ Fábio Flyer, vai parar na própria pele, transformada em tatuagem. Se, de outro lado, a receptora for Flaviana e suas sócias, periga a filipeta virar objeto de decoração na próxima reforma do Flyer Bar.

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