Fazendo História

Mechanics
Grupo de Goiânia quer fazer você sofrer

Machanics lança produto inédito no mercado nacional e funde duas das culturas marginais mais importantes do século 20. Publicado na Outracoisa número 21, de agosto de 2007

O capricho com o acabamento gráfico de um disco sempre foi motivo de fetiche na música pop. Capas bem boladas e encartes rechonchudos garantiram vendas ou, no mínimo, para dar aos fãs mais motivos de apego em relação ao produto Mas… Alguém já viu um livro – isso mesmo, um livro - inteirinho como encarte? É o que está fazendo o grupo de Goiânia Mechanics, em parceria com o cartunista Fábio Zimbres.

O negócio é tão encorpado que pode até ser considerado como algo além do encarte. “Não é um encarte, a obra é um produto estranho e híbrido”, define o vocalista Márcio Jr., idealizador do projeto. “É possível ler o livro sem escutar o disco e vice-versa, mas esta seria uma experiência pela metade, porque um (re)significa o outro”, avalia, criando um neologismo que se pretende capaz de fundamentar a questão. Coisa de acadêmico, já que ele fazia um mestrado em comunicação que resultou em “Música para antropomorfos” (o livro) e “Music for antropomorphics” – o disco. Ou vice-versa, como explica Márcio: “A pesquisa lidava com a busca de diálogo e hibridação entre linguagens distintas, os quadrinhos (narrativa imagética estática, onde só a visão é solicitada) e o rock (manifestação sonora, onde só a audição é utilizada).” Viagem.

De concreto, há o produto final; para deixar de queixo caído todo mundo que acha que não há mais mercado “físico” para a música: um álbum muito bem gravado e praticamente nu. Explica-se: há apenas com um adesivo transparente na caixa de acrílico também transparente. E um livro com mais de 200 páginas, 15 capítulos que correspondem às 15 faixas do CD. A brochura carrega uma sobrecapa que se desdobra num pôster e tem no verso as letras das músicas, fazendo as vezes - aí sim - de encarte. É quando entra Fábio Zimbres, artista-designer-quadrinista conhecido por seus trabalhos na Folha de S. Paulo, aqui na Outracoisa e também na Monstro, gravadora mãe de Goiânia que tem Márcio como um dos sócios. Zimbres tem a fama de ouvir qualquer coisa que lhe ponham nas mãos, mas dessa vez foi diferente, já que livro e CD foram criados e produzidos ao mesmo tempo.

Como assim? Márcio explica: “A idéia é que não houvesse nenhum conteúdo racional. As músicas tinham melodias vocais e comungavam da mesma atmosfera. Enviamos uma pré-produção para o Zimbres desenvolver uma narrativa quadrinística”. Zimbres fazia o roteiro para os quadrinhos, que por sua vez serviam de base para Márcio conceber as letras. “À medida em que íamos gravando as versões definitivas, enviávamos para ele finalizar as HQs”, completa Márcio. “É barulho que alimenta os quadrinhos que alimenta a música que alimenta os quadrinhos que alimenta a música. Não há nenhum registro de projetos semelhantes”. Como conhece a banda de longa data, Fábio Zimbres não teve dificuldade: “A coisa da ficção científica surgiu no momento em que foi sugerida a idéia do livro, foi algo que eu achava que podia combinar com o que eu conheço do Mechanics. Ouvindo o disco, eu fechava os olhos e imaginava uma história”, conta.

Talvez o leitor não tenha tanta facilidade para entender o espírito da coisa quanto o ouvinte. Mesmo porque a banda não se preocupa muito em facilitar a vida do incauto que se interessar pelo projeto. Ao contrário, cria é dificuldades. “Pra poder gostar o cara vai ter que sofrer dentro daquele universo musical-imagético caótico! Não entendeu muita coisa? Volta lá e ouve de novo! Lê de novo! Sofre!”, sugere Márcio Jr., que inicia o prefácio do livro com esse discurso. Zimbres concorda: “Trabalho com a convicção de que o público é capaz de compreender o que quiser”. Se você é um cara comum, desista. Ou sofra para entender o embate de duas visões de mundo simbolizadas por cidades fictícias: “SP”, que vem de São Paulo e é o ”apóstolo guerreiro”, e “SF”, o equivalente tolerante, de paz e amor, baseada em São Francisco. “A trama é complexa, há uma cosmogonia desenvolvida pelo Zimbres a partir da nossa música, uma espécie de novo Evangelho. Quero que entrem lá e tentem encontrar a saída. Não há mapas”, dificulta Márcio.

Combinar a feitura do disco com o livro não foi nada fácil. Com tanto vai-e-vem a banda quase foi para o saco; ninguém agüentava mais esperar para ter o projeto concluído. “Tivemos que dar uma parada, não havia motivo pra continuar tocando. Jaime (Queiroz, bateria) e Little John (baixo) o tempo todo dizendo pra lançarmos o disco sem o livro. O Túlio (Fernandes, guitarra) saiu do Mechanics logo após as gravações”, conta o mestre porra-louca. Agora com tudo pronto, a banda se orgulha pelo ineditismo de um projeto que só poderia vir mesmo da chamada Seattle brasileira. Márcio Jr., que participa de tudo o que acontece em Goiânia, vê o momento com um otimismo que não deixa espaço para a dor. “Diante do fracasso da indústria fonográfica, estamos construindo um caminho alternativo para o rock feito no Brasil. Os festivais estão cada vez maiores, os selos mais profissionais, estamos ocupando espaços na mídia sem apelarmos para o jabá, e sem abrir mão da nossa identidade. É uma guerra de guerrilhas, e jogamos pra ganhar”, entrega o estrategista.

Tanta teoria e falação não são necessários, no entanto, quando o assunto é rock, e nesse formato não há sofrimento, muito ao contrário. De origem rocker, pré-punk, glam até, o Mechanics, cujo início data de 1994, evoluiu em “Music for antropomorphics” para um stoner rock pesado e bem próprio. Sujo e pesado, sim, mas com riffs e levadas de guitarra bem mais desenvolvidos e apurados que no passado. Ao mesmo tempo, a banda caminha de braços dados com várias vertentes do pop rock: grunge, psychoabilly, pós e pré punk, rock pauleira setentista e assim por diante. É a síntese da música pesada contemporânea, que pode ser ouvida sem o sofrimento proposto por Márcio Jr. É só jogar o livro na estante para tirar onda de intelectual e cair no rock’n’roll.

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