No Mundo do Rock

Vanguart
Metade em português, metade em inglês, folk rock cuiabano emerge como ícone de um novo movimento

Publicado na Revista Outracoisa número 21, de agosto de 2007. Fotos: Ana Pupulin/Divulgação.

Douglas Godoy, David Dafré, Reginaldo Lincoln, Luiz Lazzaroto e Helio Flanders

Douglas Godoy, David Dafré, Reginaldo Lincoln, Luiz Lazzaroto e Helio Flanders

Qualquer um que tenha lançado um olhar no mundo da música independente nos últimos tempos já ouvir falar do Vanguart. A banda é a primeira a se destacar naquilo que vem sendo chamado de Movimento Fora do Eixo. Nascido em Cuiabá, o grupo inspirou-se em Bob Dylan, Neil Young e Woody Guthrie para criar um folk rock com sotaque brasileiro. Não tão próximo do alt country, vertente da música americana que aproxima o indie do folk tradicional, o Vanguart tem se transformado no queridinho da música independente nacional. Tanto que no ano passado teve “Semáforo” escolhida como o grande hit indie da temporada.

E nem era de se esperar que fosse assim. Afinal, “Semáforo” é a primeira música do principal compositor do grupo, Helio Flanders, feita com letra em português. “Tocando folk, com ênfase na voz e violão, foi natural o inglês”, explica-se. O rapaz refere-se a um período em que o Vanguart era uma banda de um homem só, projeto solitário do vocalista, que, desiludido com seu primeiro grupo – de glam rock, imaginem – desandou a fazer música dentro do quarto. Eram ele, o violão, um teclado e o computador. Assim, nasceram os dois primeiros álbuns da banda; que ficaram incubados porque nosso artista decidiu, numa atitude à Guevara, mergulhar no coração da América e foi parar na Bolívia, em meados de 2003. Os dois discos gravados em casa são “Ready to…” e “The noon moon”, que não chegaram a ser oficialmente lançados, mas distribuídos para amigos mais próximos. São trabalhos que registraram o embrião daquilo que seria o Vanguart. “O ‘The noon moon’ tinha canções que a gente regravou num EP, é um disco em que dá pra entender o que é o Vanguart. Mas o primeiro é horrível”, detona Helio, sem dó. As regravadas são “Blood talkin” e “Rainy day song”, incluídas em “Before Vallegrand”, lançado em 2005, e que serviu de cartão de visitas para a banda. Banda, sim, já que, desde 2004, Helio não estava mais só.

De volta da incursão boliviana, o garoto prodígio arregaçou as mangas e deu a cara à tapa. “Fiquei nove meses compondo, tava meio perdido na vida. Fiquei um tempo em La Paz, em Santa Cruz de la Sierra, fiz viagens pelas montanhas, um auto-exílio. Me deu vontade de tocar ao vivo, então voltei com o Vanguart”, conta Helio, que para a empreitada convocou os amigos que se revezariam nos instrumentos até que a formação se consolidasse com David Dafré (guitarra), Reginaldo Lincoln (baixo, antes Júlio Nhanha), Luiz Lazzaroto (teclado) e Douglas Godoy (bateria). Compositor dos mais talentosos, Helio precisava de um porto seguro para seguir adiante. “Queria tocar com uma galera que me entendesse, e que fosse de grandes músicos, algo que eu nunca fui”, admite.

PAGANDO AS CONTAS E BEBENDO VINHO

“Before Vallegrand” ganhou várias versões. Uma de 2006 trazia, além das cinco músicas, três bônus e um videoclipe para “Into The Ice”. Além das referências musicais, há ali um quê artístico que contribui para o conceito da banda como um todo. Helio cita a geração beatnik e Pablo Neruda. “É estranho olhar banda de rock e dizer que é arte, mas tentamos fazer as coisas do modo mais artístico possível”, diz. O que sobressai nesse EP, em meio a belas canções levadas ao violão, como “Seafood”, “Rainy day song” ou em “Into the ice” (dona de um clipe simples e bem resolvido), é que Helio Flanders não é “apenas” o autor de todas as músicas; havia ali a destreza de um vocalista de timbre característico e interpretação cheia de dramaticidade. “Aprendi a cantar nos palcos e espero que possa cantar melhor com o tempo”, diz o vocalista autodidata, com modéstia. Como compositor, Flanders começou cedo. Era do tipo que escrevia poesia em plena aula. “Aquela coisa do menino romântico que fica tentando arrumar namorada com um soneto”, relembra. “O poeta, o blueseiro, o trovador… Acaba tudo caindo na mesma sarjeta, do bar, do vinho, poesia e tristeza”, dramatiza. “Com 12 anos, eu precisava escrever uma música, fui na aula de violão, aprendi dois acordes, cheguei em casa e escrevi duas músicas. Era uma necessidade que eu sentia.” Garoto precoce, não?

O ano de 2005 foi aquele em que o Vanguart, com sonoridade definida, partiu para o circuito de festivais independentes. Não era mais aquela banda que tocava sentada como se fosse um bando de hippies e gerava protestos por parte da platéia que queria rock’n’roll. Era um grupo com raízes country e folk, sim, mas com uma atitude genuinamente rock. “Fomos para o Mada, em Natal; Bananada, em Goiânia; o Varadouro, no Acre; Ruído, no Rio… Isso foi muito bom para a gente. Crescemos como banda”, conta Helio. “Mas não somos fruto de festivais, acho que isso nos engrandeceu profissionalmente, no sentido de fazer música mesmo”, ressalva. Foi a prova de fogo de que o quinteto precisava para saber se havia público interessado em ouvir folk rock por esse Brasilzão. “O importante é que a gente se sinta bem tocando esse tipo de música”, conta o batera Douglas Godoy. “Eu me espanto quando tocamos uma musica do (Bob) Dylan e muitas pessoas conhecem, é surpreendente”, relata. Douglas resume uma dúvida comum a outros integrantes da banda. Mesmo que o nome Vanguart (tirado de um vídeo sobre Andy Warhol) soe pretensioso, a verdade é que nem Flanders vislumbrava uma aceitação por parte do público e quase unânime pela crônica musical. “Nunca achei que fôssemos conseguir resposta de público, pensava que na crítica algum cara meio obscuro iria escrever, não achava que fosse vendável”, confessa. “Hoje, eu vivo disso, pagamos as contas, e posso comprar um vinhozinho chileno duas vezes por mês”, comemora.

O hit indie "Semáforo" transformou o Vanguart no queridinho da cena indie nacional

O hit indie "Semáforo" transformou o Vanguart no queridinho da cena indie nacional

PORTUGUÊS OU INGLÊS? NA DÚVIDA, A DÚVIDA

O grupo foi arrebanhando fãs por onde passava. Fãs que queriam o Vanguart cantando na língua de Camões. Não que o repertório não tivesse eco, mas faltava algo. “Foi difícil começar a compor em português”, explica Helio. “Tomei muito cuidado, prezo totalmente por compor a música no idioma. Todas as músicas em português saíram inicialmente em português e as em inglês, idem”, separa. A banda teve que queimar a mufa para encaixar essas novas músicas (depois de “Semáforo”, outras pipocaram) no repertório em inglês. Ainda mais com a perspectiva de gravar um disco completo.

O que fazer? a) Simplesmente ignorar as músicas com letras em inglês e só gravar as em português; b) Primeiro, registrar as músicas em ordem cronológica, deixando a nova fase para em segundo trabalho. Perguntas, perguntas… “Todo mundo queria um disco em português, mas eu não tinha um com qualidade. Fui juntando e quando eu vi tinha seis músicas boas o suficiente pra gravar”, contabiliza Helio, ao mesmo tempo em que pondera: “Seria uma puta trairagem com os nossos fãs lançar um disco e não pôr ‘Hey yo Silver’, não pôr ‘Just to see your blue eyes see’. São músicas muito importantes para nós, não teria como jogar esse material fora e fazer um disco com 12 músicas em português. Então, decidimos bater o pé e gravar do jeito que a gente queria.”

E o jeito que eles queriam – em vez de ficar nesse impasse – era juntar o que a banda tinha de melhor, fosse em que idioma fosse. Assim, entraram no estúdio Inca, o top de Cuiabá, em dezembro de 2006, com 13 músicas ensaiadinhas, seis em português, seis em inglês, e – novidade – uma em espanhol. Douglas Godoy já tinha uma certa quilometragem de estúdio, o que facilitou as coisas. “O processo foi acelerado porque chegamos com os arranjos prontos. Gravei as 14 baterias em um dia e meio, no total foram duas semanas”. E também havia o retorno do público, nos shows, no caso das músicas mais antigas – aquelas com letras em inglês. A exceção foi “The last time I saw you”, que Helio apresentou para a banda dentro do estúdio e fechou o repertório de 14 músicas do disco que está em suas mãos agora. Helio fala, fala, e acaba sempre retomando as suas preferidas: “‘Hey yo Silver’ é especial pra gente, porque é um dos momentos altos do show, e de ‘Semáforo’ o público também gosta. Mas a que ficou mais bem gravada é ‘Just to see your blue eyes see’. E a nossa favorita da hora é ‘Para abrir os olhos’.” Tanto que esta deve ser a primeira a ganhar um videoclipe.

Ou não. “Os dois próximos clipes vão ser ‘Para abrir os olhos’, e ‘Semáforo’, não necessariamente nessa ordem, porque os dois diretores estão interessados em rodar logo, quem acabar primeiro leva”, conta Douglas. Um deles é Ricardo Spencer, responsável por trabalho para Cachorro Grande e Pitty. Falando em prêmios e clipes, a banda já tinha rodado dois, uma para “Into the ice” (aquele incluído em “Before Vallegrand”), e outro para “Cachaça”, dirigido por Paulo Caruso, que foi indicado ao VMB na categoria Clipe Independente no ano passado. Estrategicamente, boa parte do repertório reservado para o disco é de músicas inéditas, como a híbrida “Los chicos de Ayer”, a tal em espanhol, para a qual Helio reserva uma especial atenção. “É uma maneira própria de olhar América do Sul. Cuiabá é muito próximo de Peru, Bolívia e Chile; então, temos mais contato com eles”, teoriza.

TRANSIÇÃO E EXPERIMENTAÇÃO

“Vanguart”, o disco, ganhou uma capa bem planejada, como tudo feito por Helio e seus asseclas. Na foto principal, além de um figurino atípico, há a reunião de pessoas importantes na trajetória do grupo. “Gostamos muito do verde e decidimos fazer uma foto numa lagoa em Cuiabá que a gente gosta muito. Como é o primeiro álbum oficial, chamamos as pessoas significativas para nós. O lance do figurino é uma fantasia, geralmente eu não ando de vestido assim”, ri o vocalista. Trabalho concluído, será que o disco ficou mesmo como a banda queria? A história das músicas em inglês e português, alternadas, faz de “Vanguart” um trabalho de transição? “Transição pra onde?”, responde Helio, devolvendo a pergunta. “Eu não acho, mesmo porque não sei o que vou fazer no próximo disco. Não sei qual soa pior, se o ‘transição’ ou o ‘experimental’”, explica, rechaçando a idéia. A mesma que Douglas, por sua vez, abraça: “É um disco bem experimental porque é uma transição da banda, vem com a idéia de que o Vanguart é uma banda que também canta em português. Mas a gente não vai deixar de cantar em inglês”, promete. Para ele, lançar um disco desse tipo no passado seria um “suicídio comercial”. “Mas hoje as pessoas se abriram um pouco mais para entender que é uma banda brasileira que canta em outras línguas”, acredita, sem descartar a possibilidade de uma carreira internacional: “Não é isso que a gente pensa, mas se acontecer não vai ser ruim”.

O Vanguart já tem uma história e tanto, mas as coisas estão só começando. Com todos os integrantes com residência fixa em São Paulo, esse ícone de fora do eixo agora pretende se estabelecer dentro dele. “É um momento crucial”, empolga-se Helio Flanders. “Agora, a gente vai trabalhar pra valer, tocar em todos os lugares. Partindo do princípio de que a gente não acreditava que pudesse ter uma resposta de público e crítica, e isso veio como uma dádiva, vamos continuar com muita energia”, promete.

No disco de estréia, o Vanguart canta em três idiomas: português, inglês e espanhol

No disco de estréia, o Vanguart canta em três idiomas: português, inglês e espanhol

DE BYRDS A VIOLENT FEMMES

O som que veio a ser chamado de folk rock nasceu da mistura do rock feito em meados dos anos 60 com levadas de violões tipicamente da música rural do interior dos Estados Unidos. O nome-chave para a criação do gênero é o guitarrista Roger McGuinn e seu The Byrds, que de certa forma atualizou o folk/country de Bob Dylan e adjacências. O gênero permaneceu intacto até meados dos anos 70, e, na prática, a inclusão de levadas de vilões na música pop tem sido comumente associada ao folk rock (ou folk pop, se preferirem), ultrapassando as fronteiras americanas. Assim, nomes díspares como 10,0000 Maniacs, Simon & Garfunkel, The Alarm, Buffalo Springfield, Van Morrison, New Model Army, Creedence Clearwater Revival e Violent Femmes podem tranqüilamente estar juntos nessa mesma seara.

PROJETO RONDON INDIE

Primeiro, foi Goiânia, considerada a Seattle brasileira. Depois, a onda independente espalhou-se por lugares improváveis deste Brasil varonil – como Belém, Acre, Rondônia, Uberlândia, Londrina e Cuiabá, cidade que tem estabelecido novos paradigmas. É de lá que vem o Movimento Fora do Eixo.

Um dos seus idealizadores é Pablo Capilé, que iniciou as atividades do Instituto Cultural Espaço Cubo há quatro anos. “O Fora do Eixo é uma integração de cadeias produtivas, que começou como fora do eixo geográfico, mas passou a ser fora do eixo da mass media, partindo para uma visão cooperativa ao invés de clientelista”, explica. Segundo essa premissa, no meio independente, o artista não fica esperando a contratação por parte de uma gravadora, mas atua em todas as “frentes de trabalho”. “O conceito é enxergar essa nova lógica de mercado, onde a arte engajada não é caminhando e cantando a canção, é caminhando, cantando e carregando caixa”, sentencia. Para Capilé, as bandas do eixo Rio-São Paulo ainda não se aperceberam desse novo paradigma. “Elas demoraram a enxergar esse circuito auto-sustentável, onde as bandas não pensam só no cachê, mas trabalham na organização de eventos, distribuição de CDs… Então tivemos dificuldades de conseguir aglutinar agentes ‘do eixo’”, acredita.

A coisa tem funcionado, ao menos com a Cubo, que através de um sistema de crédito (o Cubo Cards), consegue viabilizar o trabalho de novas bandas com o apoio da iniciativa privada. Pablo Capilé tem semeado a idéia que, segundo ele, contribui para o crescimento do meio independente como um todo. Só em Cuiabá, que há pouco tempo nem existia no mapa do rock nacional, despontam hoje nomes incensados pela crônica musical como o próprio Vanguart, Macaco Bong e Revoltz. Mais para o interior, a efusão é a mesma: Los Poronga (Acre), Madame Saatan (Pará), Baba de Munn-ra (Tocantins), Coveiros (Rondônia), Stereo Vitrola (Amapá) e assim por diante, todas reveladas por festivais locais.

A atuação do Espaço Cubo contribuiu para a criação da Abrafin – Associação Brasileira dos Festivais Independentes, e tem como novo projeto a publicação de um edital no qual uma banda pode se cadastrar para receber créditos e montar um plano de viabilidade: gravação, turnê etc. Os cinco melhores planos serão contemplados e receberão recursos da sociedade civil.

Contato: cuboplanejamento@hotmail.com

Tags desse texto: ,

Comentários enviados

Sem comentários nesse texto.

trackbacks

There is 1 blog linking to this post
  1. Rock em Geral | Marcos Bragatto » Blog Archive » Vigor independente

Deixe o seu comentário

Seu email não será divulgado