No Mundo do Rock

Canastra
Jogo Ganho. E que jogo bonito

Publicado na Revista Outracoisa número 20, de maio de 2007 Fotos: Raïssa de Góes/Divulgação.

Marco Rafael, Marcelo Mgdaleno, Renato Martins, Edu Vilamaior, Fernando Oliveira e Marcelo Callado: ninguém segura o trem do Canastra

Marco Rafael, Marcelo Mgdaleno, Renato Martins, Edu Vilamaior, Fernando Oliveira e Marcelo Callado: ninguém segura o trem do Canastra

Seiscentos mil internautas podem garantir um empurrãozinho e tanto. Pois é. Foi justamente uma massa deste tamanho que colocou o Canastra na finalíssima do festival Oi Tem Peixe na Rede, no fim de 2005, com outras duas candidatas. E olha que eram 804 bandas concorrendo… Passada aquela primeira fase de aceitação popular, era a vez de eles encararem um corpo de jurados composto por jornalistas e produtores. E não deu outra… Os caras foram para o lugar mais alto do pódio. Canastra campeão! Era o destino “certo” para a banda que já havia sido eleita pelo jornal “O Globo” como uma das melhores coisas de 2004. O resultado deu ao sexteto a moral de desfilar como a grande revelação carioca dos últimos tempos. Agora, estamos nós aqui em 2007 e não se pode mais falar simplesmente de boa fase. Está aí uma banda que já tem histórias para contar. Muitas.

No fim de 2005, vencido o festival, os rapazes estavam diante de um contrato que seria assinado com a Sony-BMG, parceira do evento. Não foi o que acabou acontecendo. “Desde o início, sentimos que existia na Sony um certo desconforto com o fato de termos vencido”, conta Renato Martins, guitarrista e vocalista. “A expectativa deles era que o Luxúria vencesse, os próprios caras (do Luxúria) já tinham batido pra gente que eles estavam com o contrato assinado”, completa. Ele se refere à banda que ficou em segundo lugar, mas que, curiosamente, teve o disco lançado pela mesma gravadora em meados do ano passado. Não faltou tempo para que os artistas conversassem entre eles e eventuais revelações fossem feitas: na fase final do festival, um ônibus carregou os três finalistas – time que incluía também a cantora Kátia Dotto – para shows em Belo Horizonte e Vitória. No Rio de Janeiro, aconteceu apenas a final do concurso.

No vai-e-vem das negociações, intermediadas pelo produtor Bruno Levinson, idealizador do festival e interessado num desfecho a contento, a gravadora acabou liberando parte da verba destinada à gravação do disco. De antemão, a bolachinha fora ironicamente batizada de “Chega de falsas promessas”. “O Bruno Batista (diretor artístico) colocava de uma maneira aberta que a banda é legal, mas que lá dentro não conheciam a gente”, conta Renato. “Mesmo assim, em abril começamos a gravar até que a parceria com o festival acabou”, completa. Com esse adiantamento, a banda gravou as bases de baixo e bateria para 16 músicas. Tudo com a supervisão dos produtores Berna Cepas e Kassin.

Dali em diante, a coisa empacou de vez, e o imbróglio durou até o início deste ano, quando enfim o acordo entre artista e gravadora se desfez. “Fomos tocando até que vimos que corríamos o risco de não ser bem lançados. Ao ser lançado por uma grande gravadora, perde-se liberdade artística e autonomia pra fazer o que quiser. Se pagar bem, beleza. Senão, não vale a pena”, filosofa Renato. “É melhor ser independente, com o disco na mão pra vender.” No processo, valeu a experiência vivida em sua outra banda, o Acabou la Tequila, que gravou o segundo disco sob a chancela da Universal (via selo Excelente), mas não lançou. O disco só foi sair recentemente pelo Ping Pong, selo de Kassin. “Como tínhamos esse pé-atrás, conseguimos nos reservar não assinando o contrato”, revela Renato. “Se tem um festival que tem uma grana pra dar, e se vamos lançar assim, assinamos quando a grana sair. E aí saiu só uma parte.” Faz sentido, e a medida garantiu não só a gravação de oito músicas completas, mas o direito de a banda lançar o disco. Para Renato no fim das contas o saldo foi positivo. “Não teríamos o disco que temos se não tivesse essa grana. Não conseguiria a qualidade técnica, os músicos convidados”, admite. “Então, nossa experiência com a Sony, apesar de tudo, foi legal. O festival cumpriu, aos trancos e barrancos, o papel que era fazer a gravação do artista vencedor.” E pensar que o Canastra foi uma das últimas bandas a se inscrever no festival, graças à empresária Jane Deluc, que via naquela iniciativa a possibilidade de ganhar espaço e projeção na mídia.

Pretensão mercadológica nunca foi o forte do Canastra, desde que a banda foi criada, mais para dar vazão às novas músicas que Renato Martins vinha fazendo do que para estabelecer uma carreira. O grupo nasceu para ser aquilo que a crônica musical chama de superbanda. Além de Renato, do Acabou La Tequila (voz e guitarra), faziam parte no início Edu Vilamaior, da Big Trep (contrabaixo acústico), e Bruno Levi (guitarra) e Marcelo Callado (bateria), ambos do Carne de Segunda. Renato não via no Tequila espaço para um tipo de som diferente de tudo que se fazia na época, lá pelo ano de 2000. Começando já pelo contrabaixo, instrumento incomum no pop rock, nas guitarras semi-acústicas e por metade dos integrantes virem do Carne de Segunda, discreta banda carioca que nunca teve destaque, mas é, ainda hoje, a maior agência fornecedora de bons músicos do Rio de Janeiro.

A grande referência para Renato, no início (ainda sob o nome Influenza), era a banda americana Squirrel Nut Zippers, mas a convivência entre os músicos, a experiência dos palcos e o tempo mostraram que havia muito mais coisa ali. Renato explica: “As músicas geraram a banda, foi a partir da música ‘Dallas’ que o Canastra passou a existir, uma parada meio dixieland”, define. São evidentes no amálgama sonoro do grupo referências à música country, ao jazz dos anos 20, música de orquestra, samba de raiz, bandas de suíngue e por aí afora. Só que tudo tocado por músicos com formação e pegada rock. Compositor de mão cheia, Renato criou um universo próprio nas canções do Canastra. “Tem uma identidade temática de letras, muita coisa sarcástica, uma abordagem irônica sobre determinados temas, uma tentativa de buscar temas e abordagens originais”, explica o compositor. Nesse cenário, há diabos apaixonados, confidências a xícaras de café, nuvens negras e outros achados.

A intenção de fazer algo tão diferente e original, se louvável, acabou por clarear alguns fios de cabelo dos integrantes do grupo, que no início não viam um alvo específico para aquela música. “Começamos a perceber que nos diferenciávamos muito de todo mundo”, diz Renato. “Não tinha onde encaixar”, emenda Edu. “Tocamos com banda de rockabilly, mas nosso som não é rockabilly, tem um monte de coisa”, completa o baixista. A dificuldade para identificar um habitat acabou incubando a banda em ensaios e pequenos shows pelo Rio, em geral abrindo para amigos como o Autoramas, do parceiro Gabriel Thomaz, e o Matanza. “Achávamos que por ser um som diferente podíamos ser rejeitados, como aquele grau de rejeição de candidato em eleição”, compara o baterista Marcelo Callado. Os rapazes só atinaram que havia uma demanda para a música que eles faziam em dois shows.

O primeiro deles foi em Volta Redonda, no fim de 2002, para dez mil pessoas, no festival Freakshow, junto com o MQN e Distortion, uma banda local de thrash metal. “Era uma molecada de camisa preta, ficamos preocupados”, lembra Renato. “Um moleque com uma camisa do Megadeth chegou no fim do show e falou que gostou, que fazíamos música de desenho animado. A recepção foi muito boa.” A viagem de van entre Rio e Volta Redonda serviu para iniciar a relação com Fabrício Nobre, vocalista do MQN e um dos sócios da Monstro, selo que organiza o Goiânia Noise Festival, onde, no ano seguinte, a banda fez a outra apresentação decisiva. “Antes desse show, a gente não levava muito a sério o negócio da banda, ali a coisa começou a ganhar um corpo, por ser outra cidade, sem amigos na platéia”, explica Renato, que considera o festival o divisor de águas. Tanto que eles fizeram a divulgação ainda sob o nome Influenza, e saíram de lá como Canastra. Dali para o primeiro disco, lançado pela mesma Monstro, foi um pulo.

Renato Martins: um moleque com uma camisa do Megadeth chegou no fim do show e falou que gostou, que fazíamos música de desenho animado

Renato Martins: um moleque com uma camisa do Megadeth chegou no fim do show e falou que gostou, que fazíamos música de desenho animado

“Traz a pessoa amada em 3 dias” saiu em 2004 e materializou o tal repertório inusitado. Musicalmente, tinha um apanhado de sons diversificado e abrangente; e confirmou Renato Martins como um dos grandes compositores da música brasileira. Renato se superou em temas e letras bem acabados como os de “Diabo apaixonado”, “Chá & sorriso” (em parceria com Chacal e Rogério Martins), “Cada um por si”, ”Nuvem negra” e “Sorria”, só para ficarmos com alguns exemplos. Não se sabe se alguém recebeu, de fato, a tal pessoa prometida num tempo tão curto, mas certamente as músicas embalaram muitas relações e solitárias reflexões. Que o digam os críticos de “O Globo”, que elegeram o disco um dos dez melhores do ano. “Foi maneiro guardar o jornal em casa, e, além disso, vendeu shows, o telefone tocou, teve convite pra sair do Rio”, lembra Renato.

Apresentações ao vivo passaram a ser prioridade, e logo todos perceberam que era preciso tornar constante a presença do naipe de metais que apareceu salpicado no disco. Assim, Edu convocou Fernando Oliveira, seu parceiro de cozinha na Big Trep, para tocar trompete. Mal sabia ele que na seqüência o guitarrista Bruno Levi deixaria a banda, e como soldado no quartel quer serviço, o próprio Fernando assumiria a guitarra. “Foi bizarro porque no primeiro ensaio ele já sabia todas as músicas”, relembra Marcelo. A formação se transformaria em um sexteto com a entrada de Marcelo Magdaleno (saxofone, também Cisco Trio) e Marco Rafael (trombone). Com um élan de orquestra, o Canastra passou a fazer do show seu principal ás.

Além das 13 músicas, aproveitando-se da formação diversificada, o grupo incluiu no repertório covers de AC/DC (“Back in black”), “Besame mucho” (da mexicana Consuelo Velázquez, cantada por Marcelo Madá), e “Tu vuo’ fa’ l’americano” (canção popular italiana, cantada por Edu), pinçada do filme “O talentoso Ripley”, de Anthony Minghella, entre outros. Mas não foi só isso. “Já que a gente faz um som tão esquisito, passamos a ter a preocupação de entreter o público, para não deixar ninguém ir embora”, conta Renato. Ele se refere à indumentária espalhafatosa, aos topetes de Edu e Fernando, e ainda à sueca que Marco e Madá jogam em pleno palco, nas músicas em que não há o naipe de metais em ação. E isso sem falar no encerramento espetacular com a instrumental “Royal straight flush”, quando Renato sobe no contrabaixo de Edu e empunha a guitarra, enquanto Marcelo toca bateria de pé. Tudo isso fez do Canastra uma banda essencialmente de palco que não pára de angariar novos fãs. Curiosamente, o temor que todos tinham de a música não ter um público específico acabou se transformando no atual grande trunfo do Canastra: fãs de qualquer tipo de música (ou de nenhum tipo) se encantam como sexteto. Fernando resume: “Mesmo quem não gosta do som acaba se divertindo no show, porque esteticamente é maneiro, não é uma coisa que se vê todo dia.”

Foi essa banda entrosada que faturou o Oi Tem Peixe na Rede e entrou em estúdio para gravar “Chega de falsas promessas”. O título em si já se contrapõe ao do álbum anterior, que prometia trazer a pessoa amada em três dias, e remete também ao rolo com a ex-futura gravadora. Mas a origem é outra. “Essa frase é do Leo Massacre Completo, que toca na Orquestra Imperial e foi do Tequila”, conta Renato. “Tem uma história meio independente, que neguinho promete muita coisa e não cumpre, e a gente lida com essas frustrações fazendo piada”, completa, citando ainda nomes que a imprensa já deu ao Canastra, como “bola da vez” e “grande promessa”.

Finalizado no estúdio Monaural, o disco traz 11 músicas com a cara do universo canástrico, turbinadas pelos metais da nova formação. Se antes o diabo estava apaixonado, agora é o drama do bíblico Adão, “traído por sua própria costela”, que aparece. “‘Pomo-de-adão’ é o gogó… Um dia, essa palavra bateu na minha frente. É uma referencia à maçã que o cara comeu e ficou entalado, e surgiu a letra”, explica Renato, tirando mais uma de suas infinitas cartas da manga. Outra que chama a atenção é a suave “Dois dedos de conhaque” – prima de “Chá & sorriso”, do primeiro disco. Ela foi resgatada do repertório de antes do primeiro álbum. “Eu tava indo para o estúdio com o Edu, e ele comentou sobre ‘Dois dedos de conhaque’”, conta Fernando. “A gente se tocou de que essa música é do caralho. Num momento em que estávamos no estúdio esperando alguma coisa, o Fernando colocou pilha, gravamos na hora; e hoje ela é uma das preferidas de todo mundo”, emenda Renato. Outra das antigas que tinha que entrar no disco foi “Dallas”, já gravada pelo Acabou La Tequila, e considerada a “música-fundadora” do Canastra.

Mas, das 16 bases inicialmente gravadas, muitas eram bem novas. “Quando ganhamos o festival, fizemos dez músicas em um mês”, conta Marcelo. O “fizemos”, na terceira pessoa do plural, não aparece por acaso, já que as composições da banda deixaram de ser exclusivamente de Renato. “O processo mudou”, conta ele. “Antes, era uma banda que eu montei e chegava com as músicas prontas. Agora, cada um aparece com uma coisa, é informação de tudo o que é lado”. “Cara ou coroa”, que retoma o tema de sorte e azar de “Roleta russa”, é de Renato e Marcelo, e na faixa-título Renato divide a autoria com Edu. E isso sem falar na parceira com Gabriel Thomaz, do Autoramas, que aparece em “Miss simpatia” (um rockão já gravado pelo Ultraje a Rigor), que ganhou um quê de big band, e em “Motivo de Chacota”, ambas já testadas e aprovadas nos shows. Esta última nasceu de uma história vivida pelo lendário Zé Ovo, baixista do Little Quail, influência confessa de Renato Martins. “Ele contou de uma festa em que ele tinha bebido pra caralho e tinha uma merda que ele fez e não sabia qual era, e por causa disso ele virou motivo de chacota. Eu escrevi uma letra, mandei pro Gabriel e ele fez a música”, conta.

Uma trupe com a trajetória do Canastra não chegou até aqui por acaso. Com a desconfiança dos próprios integrantes, o som da banda cresceu e superou todas as dificuldades. De inusitado, passou a cativante; de zebra, venceu um festival de cartas (quase) marcadas; prestes a cair no conto do vigário de uma grande gravadora, saiu de lá com um discaço praticamente pronto. Desse carteado, pode-se esperar qualquer coisa; principalmente o inesperado.

"Já que a gente faz um som tão esquisito, passamos a ter a preocupação de entreter o público, pra não deixar ninguém ir embora", Renato Martins

"Já que a gente faz um som tão esquisito, passamos a ter a preocupação de entreter o público, pra não deixar ninguém ir embora", Renato Martins

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