No Mundo do Rock

Carbona
Em bom português, o rock’n’roll colegial está virando profissional

Publicado na Revista Outracoisa número 17, de outubro de 2006. Fotos: Marcos Hermes.

Melvin, Henrique e Pedro: seis discos em cinco anos - disposiçào é isso aí

Melvin, Henrique e Pedro: seis discos em cinco anos - disposiçào é isso aí

Impossível ficar alheio ao “barulho” que este trio tem feito nos últimos nove anos. Porque, nesse lugar chamado “underground”, não é qualquer banda que lança quase um disco por ano, faz cerca de 60 shows por temporada, e vende 17 mil cópias – sendo 5 mil de um único álbum. Tudo às próprias custas, vendendo discos nas banquinhas dos shows. E que shows! Henrique Badke (voz e guitarras), Melvin (baixo) e Pedro (bateria) fazem uma das melhores apresentações ao vivo do rock nacional contemporâneo.

A grande sacada dos rapazes aconteceu com o lançamento de “Taito não engole fichas”, em 2003, só com músicas em português. A partir dali, todos entenderam que aqueles simples três acordes, o andamento rápido e os solos econômicos traziam histórias de festinhas, motocas, fliperamas, tênis All Star e outras juvenices. Nascia o tal do rock´n´roll colegial. Ou, se preferirem, ficava exposto o estilo Carbona de se fazer punk rock. Novidade para o público em geral, o material já vinha sendo preparado há anos. Enquanto a banda compunha e gravava em inglês, Henrique volta e meia aparecia com uma música em português que entrava no ensaio, nunca no disco. “Achávamos difícil conceituar os discos com metade em cada idioma”, relembra. Outro fato que impediu o início do Carbona já com as letras em português: ele e Melvin tinham um projeto com proposta semelhante, o Vira Latas, junto com Fernando Oliveira (hoje no Canastra) e Bruno Montana, do lendário Barneys (no qual Henrique se iniciou no rock).

Com o fim do Barneys, Henrique viu-se à vontade para montar outra banda, e nem estamos falando do Vira Latas. Numa mesa do Baixo Gávea, Zona Sul do Rio, o cantor lamentava como era difícil manter uma banda ativa, com todos se empenhando. A conversa bateu bem do outro lado, onde estavam Melvin e Pedro. “Decidimos fazer o som que a gente gosta de ouvir, que tínhamos em comum: Ramones, The Queers, Screeching Weasel. Marcamos ensaio no dia seguinte, a coisa rolou e ensaiamos de novo no mesmo dia. Ficamos quatro horas tocando as duas únicas músicas que eu fiz de um dia para o outro”, conta o guitarrista. Eram elas “If you wanna dance” e “Just another way”, e a banda, a partir do fim de 1997, se chamaria “Carbona”, numa homenagem a vocês sabem quem. As duas músicas fazem parte do repertório de “Go Carbona go!”, o disco de estréia dos rapazes, lançado em 1998. De cara, rolou uma turnê por EUA e Canadá, resultado das letras em inglês e do primeiro contato com a Internet. “Tinha aquela referência de bandas em inglês, divulgamos o disco para os selos lá fora e fizemos uma turnê de lançamento”, lembra Henrique. Da viagem, ficou a experiência de palco que seria usada mais tarde em território brasileiro, além de uma inesquecível geral aplicada pelas polícias canadense e americana, em plena fronteira.

Era uma época em que o hardcore melódico à Bad Religion dava as cartas. “Até hoje, somos meio solitários”, acredita Melvin. Nem tanto. É só olhar para o cenário… existe muita gente indo fundo no bubblegum que o Carbona - se não inventou - mostrou de onde vinha. É o caso do Magaivers, de Curitiba; do Gin Tonics, de São Paulo; ou do Gramofocas, de Brasília, parceiras de turnês. Dali pra frente, a banda lançou, até 2002, outros cinco títulos. Ou seja, seis discos em cinco anos. “Gostávamos tanto de lançar disco que fizemos três em seis meses (“Straight out of the Bailey show”/2000; “Three years fuckin up live”/2002; e “A mighty panorama of earth shaking rock and roll”/2002). A vantagem de ser independente é de se fazer o que quiser”, justifica Melvin. “Back to basics”, de 1999, completa a discografia na língua ianque.

É quando voltamos para a hora da virada na carreira do Carbona. “Um dia chegamos para o ensaio, estávamos preparando um novo disco e vimos que tínhamos um álbum inteiro só com letras em português”, lembra Henrique. “Foi um momento complicado, não sabíamos o que fazer”, abre Pedro, com o consentimento de Melvin: “Tínhamos acabado de fazer uma turnê e a impressão era de que outro disco em inglês não dava mais.” O fim da turnê de ‘A mighty panorama…’ tinha deixado os meninos com a impressão de que, se quisessem fazer mais uma tonelada de CDs daquele jeito, fariam e nada mais aconteceria. “Começamos a ter necessidade de outras motivações”, admite Henrique. E elas vieram do desafio de fazer letras em português para explicitar melhor o universo do Carbona, arrebatar um público mais abrangente sem perder os fãs de longa data ou soar como uma tentativa de ganhar mercado. “Vimos aquelas músicas em português com letras legais, porque falam do que a gente sempre falou, e é divertido ouvi-las em português”, explica Henrique. Para ele, foi importante fazer o público entender e cantar todo aquele universo carbônico de filmes de Sessão da Tarde, quadrinhos, chicletes, fliperamas. “Fizemos mais shows, tivemos uma vida musical mais intensa, dialogamos mais com a mídia. Mas o determinante é o meu prazer de compor em português”, prossegue.

Mas qual seria a reação dos fãs de longa data a este tipo de mudança nos rumos do Carbona? Para evitar surpresas, testes foram feitos. Músicas “novas” disponibilizadas na web… Foi aí que a banda deparou-se com as mesmas músicas cantadas em uníssono nos shows. Era o retorno que eles queriam. Aqui, cabe um parêntese para registrar que o público do Carbona é o espelho do que é dito nas letras. “A gente sempre tocou para uma galera de 13 a 17 anos. Somos uma espécie de porta de entrada para a garotada que começa a pegar os primeiros acordes e acha bacana”, define Henrique.

Músicas como “Fliperama” (cujo clipe, dirigido por Samir Abujamra e Fabiano Maciel, teve alta rotação na MTV), “Meu primeiro all star”, “O mundo sem Joey” (em homenagem ao Ramone recém-falecido), e a própria “Rock´n´roll colegial” ganharam vida e se tornaram hits ao longo das turnês da banda. Só em 2003, foram 60 shows, passando por 30 cidades brasileiras. “Taito não engole fichas” acabou sendo um grande sucesso, o maior na carreira do Carbona até então. Pouca gente sabe, no entanto, que o disco foi calçado num ícone da música brasileira. Henrique entrega: “A grande inspiração veio do ‘Roberto Carlos canta para a juventude’, uma escola de letras em português”. Foi aí que os rapazes aprenderam que não era importante só lançar discos, mas também fazer shows, buscar mídia, aparecer. “Não adianta lançar disco correndo, porque até ele circular no meio demora muito. Tinha gente que nem ficava sabendo que o anterior tinha sido lançado, já vinha outro”, conclui Melvin. O intervalo perfeito era de dois anos, e o seguinte, ”Cosmicômica”, veio em 2005.

Era uma tarefa árdua suceder aquele que era uma espécie de “best of” do Carbona. Mas a hiperatividade latente da banda resultou em nada menos do que 19 músicas. “Foi um disco cansativo para gravar, nunca acabava”, reconhece Melvin. Mais uma vez, a banda se viu num caminho bem próprio. Em meio ao dramalhão emo que começava a ganhar espaço, letras como a de “Felicidade incondicional” davam o contraponto: “O direito de acreditar que o mundo é bom / e que você está aqui pra ser feliz.” Só a banda vendeu, logo de cara, 400 discos, numa turnê de 25 shows em 30 dias. “Nem dá pra imaginar um show do Carbona sem músicas como ‘Eu quero ir pro Japão’ e ‘Nebulosa’”, acredita Melvin. Mudança mesmo só no jeito de Henrique cantar, fato que chegou a ser notado – claro – pelos fãs. “Antes, eu cantava rasgado porque era o jeito de não desafinar e porque eu queria cantar igual ao Ben Weasel, do Screeching Weasel”, confessa. “Mas começamos ver que existia um outro caminho.”

Henrique: a grande inspiração veio do "Roberto Carlos Canta Para a Juventude", uma escola de letras em português

Henrique: a grande inspiração veio do "Roberto Carlos Canta Para a Juventude", uma escola de letras em português

O assunto acaba desaguando em “Apuros em Cingapura”, que promete fechar a trinca da nova fase em grande estilo. Primeiro, porque o repertório apresentado, numa gravação caseira, era de ótimo nível do ponto de vista das composições, e apontava para um rock maduro sem sugerir que a banda estava perdendo o vínculo com sua porção adolescente. Segundo: a banda costurou uma parceria com o selo Toca Discos, e gravou as 12 músicas do CD na Toca do Bandido (certamente um dos melhores estúdios do País) sob os cuidados de Tomas Magno – que atuou como engenheiro de som em álbuns do Skank e Barão Vermelho, entre outros. O produtor deu o que faltava para aquela banda de amigos que se reuniu nove anos antes para tocar/repetir o estilo de seus ídolos. “É um disco de rock´n´roll com as histórias musicadas do Carbona”, acredita Henrique.

O entrosamento com o produtor acabou sendo perfeito, mas o começo foi difícil. Afinal, os rapazes estavam acostumados a fazer tudo por conta própria, e de repente viram-se diante de alguém que estava ali para contribuir apontando novos caminhos. Antes mesmo de Tomas iniciar as gravações, acompanhou a banda em vários estúdios pela cidade e ouviu toda a discografia. “Ele perguntou se a gente queria um disco bem gravado ou se queríamos que ele entrasse como produtor”, conta Melvin. “Ele identificou que um disco do Carbona é um timbre de guitarra que atravessa o disco, chegamos ao cúmulo de gravar três músicas como se fosse uma só”, reconhece o baixista. Enquanto isso, Henrique se deliciava com a verdadeira “Disneylândia da guitarra” que é a Toca do Bandido.

O resultado é um belo disco, cheio de músicas “fáceis” e colantes como sempre, mas com uma produção rara até para uma banda já inserida no mercadão. Que dirá para um Carbona, que há anos milita no circuito independente. “Um cara escroto”, terminado o trabalho, surgiu como uma das faixas preferidas pela banda. “A gente não dava muito por ela, mas foi ficando muito boa”, revela Henrique. Tinha também a ramônica “Eu sou doente”, que passeia pelos anos 60 e explora o duplo sentido das letras. E “Joga os dados outra vez”, boa para embalar amores colegiais. Com tanta música legal, o difícil foi fechar o que entraria no disco. “A gente começava a gravar, montava uma ordem, aí vinham músicas alpinistas, subindo pra caramba”, brinca Melvin. Ele se refere a “Lunático”, versão em português para “Lunatic”, resgatada do primeiro disco, talhada para tocar nas FMs, assim como “Vide-bula”, que abre o disco, e já foi devidamente testada e aprovada nos shows. E já pela terceira vez seguida uma música do parceiro catarinense Kaly (autor de “Um mundo sem Joey”), a balada “Os lindos refrões que um velho ensinou”.

O fecho mais que perfeito para um disco irretocável veio com a capa, inspirada na pop art de Roy Lichtenstein. O uso das cores primárias, retículas e a estética de quadrinhos, com personagens em close, dialogam com o nome do disco. O título, aliás, tem uma explicação. “‘Apuros em Cingapura’ é mais um volume de histórias em melodias grudentas como chiclete. Como Cingapura enfrentou a proibição por lei do consumo de chicletes, sem dúvida representaria uma grande aventura para o nosso bubblegum”, explica Henrique. O globalizado guitarrista ainda preparou um faixa-a-faixa exclusivo pra finalizar. Dá uma olhada aí:

“Vide bula”: “Quando tocamos esta música pela primeira vez no estúdio, tivemos certeza de que ela seria a abertura do disco. Um som que atua como nosso porta-voz e diz ‘Olá, nós somos o Carbona, estamos aqui para tocar rock´n´roll.’”

“Lunático”: “Memórias de um tempo em que o rock usava camisa preta com uma ilustração colorida, de monstros e caveiras, e reunia nas festinhas uma meia dúzia de desajustados num canto da sala. Do outro, as garotas que você sempre sonhou e sequer pareciam respirar o mesmo ar.”

“Um cara escroto”: “Caras escrotos circulam aos montes por aí, mas o desta música saiu das telas da Sessão da Tarde. É uma representação musical do babaca. Qualquer semelhança com um conhecido é mera coincidência.”

“Os lindos refrões que um velho ensinou”: “Antes de músicos, somos fãs de música. Ao longo de dez anos, desenvolvemos adoração por muitas bandas e artistas com os quais dividimos palcos pelo Brasil. Esta música é de autoria do Kaly (Stuart), um de nossos compositores favoritos.”

“Joga os dados outra vez”: “Estava em Curitiba, na casa do Rodrigo Porco, dos Magaivers, tocando uma de suas músicas no violão e fiquei imitando um backing de uma música dele. Assim nasceu o ‘aha’ que abre o refrão dessa música. Escrevi as primeiras linhas na van, a caminho de um show em Maringá.”

“Luiza Denizot”: “Luiza, desejo toda sorte do mundo pra você! Uma carta musicada numa música veloz, com melodias fortes e que me emocionam.”

“Eu sou doente”: “Nossa onda sempre foi cantar histórias. Essa é uma delas. Um dia, mexendo no fundo do armário, achei uma sacola com pertences da namorada que acabara de partir. Entre outras coisas, lá estava um saco de absorventes.”

“Vertiplano”: “Uma das minhas composições favoritas. Uma balada ‘pra cima’, de amor, que nos leva a uma viagem aos incríveis anos 80, a bordo de um Vertiplano. Nós sempre brincamos dizendo que um disco de rock, para ser bom, tem que ter uma balada.”

“Sessão da Tarde”: “Às vezes, tenho a impressão de que passamos parte desses dez anos juntos vivendo num mundo imaginário onde a existência se resume a assistir Sessão da Tarde, ouvir Ramones, andar ao lado de garotas roqueiras, jogar Space Invaders e sair de casa atrasado pra ir ao colégio.”

“Amor de supermercado”: “Uma história autobiográfica num dia de Natal diferente e especial. Longe de casa, bem acompanhado e embriagado. Como não escrever uma música?”

“Porque”: “O sol da minha guitarra sempre desafina, eu não sei ao certo por quê. ‘Porque’ fala sobre incompreensão. Uma música densa, forte, que leva o Carbona a um caminho mais denso. As guitarras no refrão têm uma urgência distorcida.”

“Se você fosse um robô”: “Seres humanos, cada vez mais fechados, cada vez mais ariscos, cada vez mais descrentes e desconfiados. Aquele que não aceita a felicidade como possibilidade está condenado a ser infeliz.”

Melvin: até hoje somos meio solitários

Melvin: até hoje somos meio solitários

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