Fazendo História

RPM, Lobão, Lulu Santos e o famigerado mercado musical brasileiro

Análise do mercado musical brasileiro feita em 2002, a partir da sugestão de Lulu Santos e do lançamento de dois álbuns ao vivo, um do RPM, e outro do Lobão. Publicado na Dynamite 56.

Dois lançamentos de ícones do rock nacional da década de 1980 me chamam a atenção para um fato interessante, de uma matéria sugerida sem querer pelo Lulu Santos, outro ícone oitentista, no momento de uma entrevista, em que, entre uma resposta e outra, ele disparou com a maior naturalidade: “O Lobão e eu, cada um está no lugar em que deveria estar. Eu no escritório de uma major, com todas as benesses que isso traz, e ele com o CD na banca de jornal”.

Depois de receber e ouvir, no mesmo dia, os discos gravados ao vivo, de Lobão e RPM, sem entrar no mérito da música em si, mas ficando apenas naquilo que eles hoje representam, me ocorre a forma como o Brasil trata seus artistas, sobretudo no rock. Quando digo Brasil, me refiro não somente à industria musical, mas também à imprensa, fãs, poder público, etc.

O RPM, por exemplo. O grupo detém até hoje o recorde de vendagens de um único álbum (na época LP) de rock, o ao vivo “Rádio Pirata”, com 2,2 milhões de cópias, se não me engano. Esse disco inclusive teve que ser lançado às pressas para não deixar a pirataria tomar conta. Pirataria na época era gravar da rádio em casa e passar para adiante. Depois, consta que o grupo virou pó, literalmente, e nunca mais voltou a existir. Isso foi lá pelos idos de 89, e de lá pra cá Fernando Deluqui andou gravando com o Engenheiros do Hawaii e lançou um disco solo independente, o baterista PA Pagni tocou em várias bandas de rock pesado no underground, Luiz Schiavon sumiu, e Paulo Ricardo, por ser o frontman, tentou uma carreira solo de razoável sucesso e gosto duvidoso, muito longe do que se pode chamar de rock.

Agora, eles são reunidos para voltar com o grupo, como tábua de salvação da contabilidade da gravadora. E topam. Só que, para evitar riscos, têm que utilizar a fórmula da gravação ao vivo, só com os sucessos, que, a bem da verdade, deve dar para encher só um CD mesmo e olhe lá. Antes, porém, para impulsionar as vendas, o grupo coloca letra em português na música tema do Big Brother original, da Holanda, e comparece diariamente na casa de todos os brasileiros, só para garantir.

Lobão, no auge dos anos 80, quando freqüentou as principais manchetes dos jornais populares por ter sido preso, não chegou a vender tanto quanto o RPM, mas, acredita ele, vendeu muito mais do que a gravadora apresentou em seu borderô. Convidado para lançar coletâneas, discos ao vivo ou caça-níqueis similares, Lobão disse não e tornou insustentável a manutenção de seu contrato com uma grande gravadora. Alijado do mercado, teve que lançar seus discos por conta própria. E já que tinha de ser assim, ele aproveitou para rejeitar um milhão de reais para liberar a música “Me Chama”, seu grande sucesso (que ele hoje se recusa a tocar), para uma empresa de telefonia, e passou a divulgar seus discos somente em veículos independentes. Jabá então, nem pensar.

RPM não é vilão, e Lobão, tampouco herói. Os dois são vítimas do mercado musical brasileiro, cada um se virando de acordo com suas oportunidades e convicções. Mercado que tem como praxe transformar um artista (ou gênero) num estrondoso sucesso, para logo em seguida destruir esse artista (ou gênero) e substituí-lo por outro. Essa manobra de rotina explica a percebida decadência do rock brasileiro no início da década de 90. As gravadoras desgastaram tanto o estilo, que resolveu substituí-lo por outros, fazendo exceção a nomes com grande potencial de venda. Se boa parte dessas bandas tivesse seguido com os investimentos médios de se faz num artista, hoje, salvo um ou outro caso, jamais teríamos um “revival” dos anos 80, porque simplesmente as bandas estariam aí mesmo. E ainda haveria espaço para novas bandas do rock dos anos 90, que acabaram passando quase em branco, por cortesia dessa política das gravadoras. Mas nada disso aconteceu, e tivemos todos que aturar uma produção musical de baixo nível em todos os sentidos, que ninguém, nem essas empresas, agüenta mais.

Não sei direito como acontece no exterior (afinal todas as grandes gravadoras são multinacionais), mas não imagino o Paul McCartney sendo convidado para colocar letra no tema de Big Brother. Muito menos aceitando. Nem Jimi Hendrix cantando num álbum acústico do Pearl Jam.

Voltando ao RPM e ao Lobão, seus dois discos, apesar de ambos serem gravados ao vivo, mostram realidades extremamente antagônicas. Um (o do RPM) representa o esquema sujo consolidado pelas grandes gravadoras, que além de não atender à enorme demanda de produção artístico-musical do país, ainda se mostra ineficaz, visto que, a cada dia, essas empresas fecham mais no vermelho do que antes, seja pela derrocada da pirataria, ou (o mais provável) por pura incompetência mesmo.

O outro é a alternativa que mostra viável a produção independente, não só por uma questão ideológica, mas por poder lançar artistas sem ter que ceder à premissas decadentes e ultrapassadas do esquemão. E isso abre um campo para todo tipo de artistas, principalmente os que são rejeitados pelas gravadoras. Porque Lobão tem lá suas receitas do tempo em que ele era das grandes gravadoras, seus discos dessa época ainda vendem e suas músicas tocam, o que lhe garante o pagamento de direitos autorais. Ele próprio sabe disso, tanto que, diferentemente do que dizia no início da empreitada independente, já está lançando novas bandas do underground carioca.

Se um desses modelos vai substituir o outro, ninguém sabe, até porque os capitalistas sempre nos ensinaram que não existe fórmula, o mercado é que deve mandar. Mas o mais certo, e aí o exemplo que vem do exterior é elucidativo, é que um meio termo seja a solução, isto é, a absorção dos que hoje nós chamamos de independentes, pelo mercado. Porque a experiência lá de fora nos mostra que é possível uma grande gravadora ter selos menores com artistas, digamos, mais específicos, ao mesmo tempo em que tem o artista que vende um milhão de cópias. E aí o mercado tem quer ser outro mesmo, não é?

Por isso, mídia e público têm que adotar comportamentos diferentes. Não dá mais para o departamento de marketing ou as assessorias de imprensa das gravadoras pautarem as matérias que vão ser publicadas nos jornais e revistas. Não dá mais para admitir o jabá institucionalizado nas rádios e na TV. Muito menos admitir público esperando a informação ser entregue em casa. Sempre tivemos as ruas e as casa de shows, e agora ainda há a malfada Internet, que pelo menos para a troca de informações serve.

Como se vê, a equação do problema não é fácil, mas ponto a partida já começou, a bola já está rolando. Porque no futuro queremos ter RPMs, Lobões e Lulus respeitados e se dando ao respeito.

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