No Mundo do Rock

Filme sobre heavy metal disseca o gênero

Dirigido por um antropólogo, “Metal: A Headbanger’s Journey” promete ser o mais completo documentário já feito sobre uma das correntes mais polêmicas do rock. Íntegra da entrevista feita para matéria publicada na Bizz 204, de agosto de 2006. Fotos: Divulgação.

Achamos que este é o primeiro documentário que leva o heavy metal a sério e fornece aos não fãs de metal uma janela para uma cultura fascinante que eles não entendem completamente.

Achamos que este é o primeiro documentário que leva o heavy metal a sério e fornece aos não fãs de metal uma janela para uma cultura fascinante que eles não entendem completamente.

Por que a crítica musical pega tanto no pé dos fãs e das bandas de heavy metal, se os shows do gênero vivem lotados, os discos vendem feito água, e o que não para de surgir são novas tendências que revitalizam todo o cenário? Se você volta fica encafifado com questões como essa, vai se interessar em assistir ao filme “Metal: A Headbanger’s Journey”, dirigido pela dupla Sam Dunn e Scot McFdyen. O documentário dá uma geral no metal feito em todo o mundo, e contém entrevistas exclusivas com ícones do gênero, além de fãs e dos próprios diretores. Eles são acompanhados pela câmera e tentam descobrir tudo sobre um dos mais polêmicos subgêneros do rock.

Sam Dunn ganhou destaque na mídia por ser um antropólogo e se interessar por heavy metal, só que antes de se graduar na Universidade de York, em Toronto, ele já era fã de música pesada desde os nove anos. Para ele, a questão antropológica está intimamente ligada a uma cultura estereotipada e mal compreendida como o heavy metal, e um dos objetivos do filme é mostrar para as pessoas que nunca se interessaram pelo gênero, que ele pode ser uma coisa legal e socialmente interessante.

Nesta entrevista exclusiva, talvez a primeira a ser concedida a um veículo brasileiro, Sam Dunn conta detalhes sobre o filme, as dificuldades para conseguir patrocínio e ainda em agendar as entrevistas, bem como o lado antropólogo completou o do fã e vice-versa. A realização deste filme, que não tem previsão de estréia em circuito, nem de lançamento em DVD, é mais uma prova de que é possível fazer aquilo que, em princípio, parece inviável aos olhos do mercado.

Rock em Geral: Fale sobre o filme “Metal: A Headbanger’s Journey”:

Sam Dunn: O filme me segue numa viagem através da América do Norte e Europa para entender o impacto do metal na sociedade depois de 35 anos. Ele explora a questão: por que o metal é tão adorado por milhões de fãs em todo o mundo e ainda causa tanta controvérsia e escárnio da sociedade mainstream? Achamos que este é o primeiro documentário que leva o heavy metal a sério e fornece aos não fãs de metal uma janela para uma cultura fascinante que eles não entendem completamente. O filme tem entrevistas com um grupo vasto de músicos, incluindo Tony Iommi, Bruce Dickinson, Alice Cooper, Ronnie James Dio, Vince Neil, Slayer, Slipknot, Arch Enemy, Lamb of God, Emperor e muito mais.

RG: Como você decidiu fazer esse filme, e como conseguiu contato com todos esses artistas, especialmente os mais famosos? Qual foi mais difícil?

Sam: Há seis anos eu me mudei para Toronto para fazer minha graduação em antropologia na Universidade de York. Quando estava concluindo o curso, fiquei interessado em escrever um livro sobre a história do heavy metal e dividi essa idéia com Scot McFadyen, um velho amigo que estava trabalhando como supervisor de música para cinema e TV. Ele estava trabalhando na trilha sonora do filme “Ginger Snaps” (no Brasil, “Possuída”) e então nós íamos a vários shows de metal juntos. Ele achou que o livro seria um bom tópico para um documentário e passamos a trabalhar com a idéia de que não havia nada muito profundo sobre a música e a cultura metal em nenhum filme. Contatamos os artistas através da boa e velha persistência. Mandamos inúmeros e-mail e faxes para empresários perguntando se os músicos estariam interessados em participar. Também tivemos muita sorte porque o Rod Smallwood, empresário do Iron Maiden, apoiou o projeto desde o comecinho e nos ajudou a conseguir entrevistas com artistas grandes como Tony Iommi, Slayer, Slipknot e Iron Maiden. Trabalhamos muito para conseguir entrevistar o Lemmy, ele havia machucado o pé e estava difícil de encontrá-lo. Tentamos no Wacken Open Air e em Los Angeles, duas vezes. Acabamos o entrevistando quase por acaso, na nossa terceira ida a Los Angeles. Mas valeu a pena porque ele foi fantástico, como esperávamos.

RG: Desde quando você se considera um fã de metal? Diga como você teve contato com o heavy metal, e por que se tornou um fã de verdade:

Sam: Eu ouço metal desde que tinha uns nove anos. Primeiro eu ouvia o pop metal que tocavam nas rádios e nos programas de TV, bandas como Mötley Crüe, Quiet Riot, Twisted Sister e Van Halen. Mas aí eu flutuei progressivamente para bandas mais pesadas como Iron Maiden, Metallica, Slayer e Judas Priest. Então, aos 12, eu descobri o metal underground e me tornei um grande fã do death metal da Flórida (Morbid Angel, Death, Obituary) e da cena thrash metal da Bay Area (Testament, Violence, Sadus). Descobri o metal mainstream através da TV e do rádio, e a bandas mais underground em rádios universitárias locais, trocando fitas e indo a shows. O metal era mais poderoso, intenso e interessante de que qualquer coisa durante os anos 80, e ainda é assim hoje. Eu sempre encontrei mais profundidade e virtuose no metal do que em qualquer outro estilo musical, além de achar a obsessão do metal pelo lado obscuro/desconhecido/tenebroso/místico da existência humana uma coisa muito inspiradora. Eu acho que o Michael Amott (Arch Enemy/Spiritual Beggars/Carcass) foi muito feliz ao dizer: “Metal é beleza e brutalidade”. É o que eu acho também!

RG: Como um fã de longa data, suponho que você teve dificuldades em entrevistar seus próprios ídolos. Como foi isso?

Sam: Claro que foi um sonho de uma vida inteira encontrar tantos músicos que eu admiro desde a minha adolescência, especialmente Iommi, Dickinson e Araya. Foi uma grande honra poder falar com eles sobre a música deles e as motivações que os levam a criar a música pesada. Eles foram muito gentis e falaram apaixonadamente sobre a música deles, e eu realmente admiro a habilidade deles em articular as razões para tocar heavy metal e o que isso significa para eles.

RG: Sobre os depoimentos dos músicos, qual deles foi o mais legal? Há alguma história curiosa nessas entrevistas?

Sam: Uma das melhores entrevistas foi com o Tony Iommi, do Black Sabbath. Nós o entrevistamos numa hospedaria esquisita na parte rural da Inglaterra, nos arredores de Birmingham. O que tem a entrevista para ser tão boa foi que ele mostrou uma imagem completamente diferente da do Ozzy, sobre o Black Sabbath e o metal. Infelizmente, por causa da série “The Osbournes”, Ozzy se transformou na cara do metal para a pessoa média. Mas nesse processo ele se transformou numa paródia dele próprio e os fãs de metal o levaram muito a sério. Tony, no entanto, tem uma fala macia, é um cara inteligente que fala articuladamente sobre o som que ele criou e sua influência ao longo dos anos.

RG: Você tomou depoimentos de fãs também? Como você os selecionou? Eles tinham coisas interessantes para dizer?

Sam: Uma parte do filme foca os fãs. O Scott pegou um fã na grade de um show do Slipknot no Canadá e os outros nós encontramos através de um rigoroso processo de pré-entrevistas. Era muito importante para nós falar com os fãs sobre metal, porque eles têm sido tipicamente retratados como pessoas brutas, burras, que só se preocupam em beber cerveja e bater cabeça. Obviamente isso é mais importante, mas crescer com um fã de metal me fez entender que eles têm muito a dizer sobre heavy metal, e o quanto isso é importante para eles. E só lhes darem a oportunidade.

RG: Como vocês conseguiram os patrocinadores para fazer o filme?

Sam: Conseguir financiamento para fazer o filme foi um processo longo e difícil. As cotas de patrocínio foram divididas entre uma emissora de TV canadense, o governo canadense e uma distribuidora de filmes. Considerando que somos diretores de filme pela primeira vez, e com um tema de difícil, não foi nada fácil convencer os financiadores de que nós conseguiríamos fazer o filme. Na verdade demorou três anos para conseguir o dinheiro e nós quase desistimos em várias partes do processo. Esse foi provavelmente a parte mais difícil de toda a coisa.

Sam Dunn e Scot McFdyen: usamos a antropologia para analisar os temas que têm sido associado ao heavy metal por muito tempo, particularmente gênero e sexualidade, religião e satanismo, e morte e violência.

Sam Dunn e Scot McFdyen: usamos a antropologia para analisar os temas que têm sido associado ao heavy metal por muito tempo, particularmente gênero e sexualidade, religião e satanismo, e morte e violência.

RG: Foi difícil fazer a trilha sonora com tantos artistas famosos, por causa dos direitos autorais?

Sam: O Scot trabalhou como supervisor musical durante muito tempo, então ele trouxe muita experiência e pode negociar as licenças com os vários artistas e gravadoras. Foi importante que nós não cortamos nada na trilha sonora, nos certificamos de que temos aristas com crédito e influentes de diferentes subgêneros do metal. Gastamos cerca de 250 mil dólares com a música no filme. Não poderíamos fazer um filme sobre metal com bandas de segunda linha!

RG: Essa é a sua primeira experiência fazendo um filme?

Sam: Sim, eu estudava antropologia e nunca imaginei que teria a oportunidade de co-dirigir um documentário. Mas eu sempre fui fã de documentários e acho que antropologia é uma ciência que é excelentemente apropriada para documentários porque sua essência é explorar culturas sobre as quais as pessoas têm um conceito equivocado. Por sorte o Scot tem um grande currículo como supervisor musical e assistente de direção, então ele trouxe a experiência cinematográfica para o projeto. Nos esforçamos para fazer um filme que fosse respeitado pelo heavy metal e pelos fãs, e ao mesmo tempo abrisse uma janela para esse mundo que poucas pessoas entendem.

RG: Você é um antropólogo. Isso te ajudou no filme? Há alguma análise antropológica nele?

Sam: A antropologia é uma boa ferramenta para um documentário, porque ela leva as pessoas para entender culturas sobre as quais elas têm conceitos equivocados ou estereotipados. Minha bagagem na antropologia definitivamente ajudou porque nos deu uma estrutura para examinar o metal como um fenômeno cultural, não só musical. Então usamos a antropologia para analisar os temas que têm sido associado ao heavy metal por muito tempo, particularmente gênero e sexualidade, religião e satanismo, e morte e violência. Esses fenômenos são atemporais e eu acho que é por isso que o metal pega a imaginação das pessoas.

RG: Você trabalhou com cidadãos guatemaltecos durante um certo tempo. Como exatamente foi esse trabalho? Como decidiu trocar esse estudo pelo heavy metal?

Sam: Para a minha pós-graduação eu fiz um trabalho de campo na Guatemala e no Canadá para entender o problema dos refugiados da Guatemala que moram em Toronto. Eu sempre me interessei por migrações, globalização e questões sobre justiça social, e viajei para a América Central várias vezes, então se encaixou bem fazer esse tema. Mais especificamente, minha pesquisa focou a experiência dos homens refugiados da Guatemala e suas noções de masculinidade e de machismo, numa nova perspectiva cultural, social, política e econômica. Eu suponho que esse interesse na identidade masculina foi um link para o metal, porque o metal sempre foi considerado o mais macho das formas de música. Superficialmente, parece que não há nada em comum entre refugiados da Guatemala e heavy metal, mas eu acho que não é o caso!

RG: Com que outras culturas você trabalhou?

Sam: Antes de eu começar a trabalhar no filme, trabalhei como pesquisador numa agencia de desenvolvimento comunitário em Toronto que fornece serviço social e de saúde para refugiados. Participei de vários projetos em questões sobre moradia, saúde e emprego, e tive a oportunidade de trabalhar com muitas comunidades diferentes. Esse trabalhou não se fixou em nenhuma comunidade especificamente, mas em questões que envolviam as pessoas de várias partes do mundo se ajustando na sociedade canadense.

RG: Em geral, quando pessoas acadêmicas decidem trabalhar em assuntos como “fãs de metal”, por exemplo, as conclusões nunca são tão reais quanto quando o trabalho é feito por alguém do meio. No seu caso, você vem dos dois lados. Isso te ajudou?

Sam: Parte do nosso desafio foi equilibrar as perspectivas do antropólogo e do fã, porque, em última análise, os dois têm pontos de vista válidos e importantes para o filme. Como nós queríamos fazer um filme para os fãs do metal e para os curiosos em geral, eu e Scot nos certificamos de que havia um bom equilíbrio. Ele ajudou checando se não tinha muita coisa de fã “nerd” que pudesse excluir o não fã, e eu queria ter a certeza de que os fãs de metal percebessem que o filme respeita o gênero. A antropologia forneceu a lente para analisar o metal como um fenômeno cultural.

RG: Como o filme está indo nos Estados Unidos e Canadá? E na Europa?

Sam: O filme tem sido bem recebido em muitos países, e têm sido exibido em salas de cinema e também lançado em DVD em todos esses países. Estamos sendo bombardeados com um retorno muito bom. Obrigado a todos que foram ver o filme!

RG: O filme foi exibido em festivais de cinema?

Sam: Sim, foi exibido em mais de vinte festivais ao redor do mundo, e nós pudemos viajar para vários deles no Canadá, Estados Unidos, Holanda, Noruega, Suécia e Japão. Festivais de cinema são uma grande oportunidade para exibir o filme para platéias que nunca sequer pensaram em ver um documentário sobre heavy metal. É a oportunidade de transcender o público dos fãs de metal.

RG: Que extras têm no DVD?

Sam: O DVD foi lançado na América do Norte e logo vai sair no Brasil e em outros países. O DVD é duplo: o primeiro disco tem o filme, e o segundo tem muitas coisas especiais, incluindo uma versão interativa da árvore genealógica do metal, 17 entrevistas na íntegra, cenas de bastidores das viagens, um documentário sobre o black metal da Noruega, uma extensa entrevista com o Lemmy, no Rainbow…

RG: O que mudou na sua cabeça depois de fazer esse filme? Você mudou sua opinião sobre o universo do metal?

Sam: Fazer esse filme aprofundou meu apreço pelo heavy metal e o impacto positivo que ele tem na vida das pessoas. A música vem primeiro, mas o metal é mais que isso. É uma parte importante da identidade das pessoas e uma força vital criativa que desafia o comercialismo, o moralismo e as regras da sociedade mainstream, em particular a religião organizada. O metal é um lugar onde os jovens podem achar um lugar para pertencer e para explorar os elementos desconhecidos e fantásticos da vida. Também proporciona às pessoas uma liberação catártica e emocional que tende a ser negligenciada em uma sociedade que sempre subestimou a expressão do corpo e as expressões viscerais.

RG: Como você vê o heavy metal hoje?

Sam: A cena metálica hoje é muito diferente do que era nos anos 70, 80 e 90. Ainda bem que aprendemos alguma coisa com o carro de propaganda do mainstream jogando o pop e o movimento nu-metal, e as bandas que agora estão tendo atenção global são aquelas que suaram no underground por muito tempo, como Lamb of God, Arch Enemy, Children of Bodom, Mastodon etc. O undeground hoje tem muito mais visibilidade por causa da Internet e da mídia especializada. Mas em termos do espírito da cena metálica eu acho que estamos mais perto do feeling do movimento underground dos anos 80 do que nunca estivemos.

RG: Você concorda que há uma separação entre o heavy metal americano e europeu, ao menos em termos de mercado?

Sam: Eu acho que a cena européia é muito menos vulnerável a modas e hypes do que aquilo que é criado pelas grandes gravadoras e a mídia nos Estados Unidos. Também, por causa do bem estabelecido circuito de festivais na Europa, essa cena é muito mais fiel ao metal tradicional ao longo dos anos, especialmente nos anos 90, quando comercialmente o metal esteve por baixo. A cena do metal norte-americano é mais abraçada pelo mainstream. Em poucas palavras: há uma grande polarização nos Estados Unidos, e não na Europa.

O metal proporciona às pessoas uma liberação catártica e emocional que tende a ser negligenciada em uma sociedade que sempre subestimou a expressão do corpo e as expressões viscerais.

O metal proporciona às pessoas uma liberação catártica e emocional que tende a ser negligenciada em uma sociedade que sempre subestimou a expressão do corpo e as expressões viscerais.

RG: Você incluiu o nu-metal no filme? Você acha que nu-metal também é heavy metal?

Sam: Colocamos o nu-metal na nossa árvore genealógica do metal, e também entrevistamos o Slipknot, que muitos consideram ser uma banda de nu-metal. No nosso filme sempre consideramos o lado de ser abrangente, mais do que o de ser excludente. Nu-metal tem muito de hardcore que tem no metal, incorporado com coisas do hip hop e eletrônica – então, sim, é metal e pode levar o gênero a caminhos que a pessoas menos esperam.

Tags desse texto:

Comentários enviados

Sem comentários nesse texto.

Deixe o seu comentário

Seu email não será divulgado