Fazendo História

Guerrilha!

Líder da Dorsal Atlântica passa à limpo o cenário do heavy metal brasileiro, entrega as mazelas do show business, e ensina como uma banda pode ser autêntica e sobreviver à corrupção do sistema. Resenha do livro de autoria de Carlos Lopes, publicada na Rock Press, em 1999.

guerrilhaExistem várias maneiras de se escrever uma biografia. Em se tratando de um artista da música pop, em geral é um jornalista especializado o indicado para a árdua tarefa. Uma outra forma são as autobiografias, ou seja, é o próprio artista que se encarrega de escrever toda a sua história. Num estado intermediário, há ainda artistas que, ou não dispõem de tempo ou não têm os dotes para a escrita. David Ritz, por exemplo, se encarregou de acompanhar B.B. King e Ray Charles, para arrancar deles os depoimentos para as suas respectivas biografias.

Carlos Lopes representa um caso totalmente à parte. Músico por idealismo, jornalista por opção de querer (e de ter) o que contar. Fruto de seus próprios anseios e inquietações, o “Carlinhos Panqui” se transformou no Carlos Vândalo, e com postura firme de líder underground de mais de uma geração semeou verdades e implantou confiança em cabeças e corações. Suas letras, músicas e principalmente suas atitudes encontraram eco em pessoas comuns, porém dotadas dos sentimentos que tinham a mesma origem dos seus. E não foram poucos. E não foram indiferentes. Tanto que, por onde passou, e em quem se fez ouvir, Carlos Vândalo e a Dorsal Atlântica causaram polêmica. Em “Guerrilha!”, Carlos Lopes é o jornalista que conta a história da Dorsal Atlântica, e ao mesmo tempo, é o autor de sua própria biografia.

O nome Carlos Vândalo pesou tanto nos ombros do líder da Dorsal que ele, amadurecido, substituiu o segundo nome do personagem pelo seu próprio, fato até hoje não aceito por muitos. E esse foi só uma das mudanças polêmicas da história de Carlos Lopes, e da própria Dorsal Atlântica, nome que ele sempre fez questão, e ainda faz, de manter imune a todas as mazelas do show business e da mídia. E assim condenou sua própria banda um árduo, complicado e eterno papel no underground: o herói que vegeta em meio aos covardes que prosperam. Como tal, Carlos e a Dorsal enfrentaram dificuldades imensas, mas sempre tirando de letra, se comparadas às humilhações que o mainstrean oferece. “Karma de banda de abertura é tocar com som ruim, mas o que é isso, comparando-se à possibilidade de poder dormir, sem ter subornado ninguém, sem ter dado um centavo que fosse em troca de favorecimentos, e continuar escrevendo uma história digna e ímpar no rock brasileiro?”, é uma passagem que registra a tardia, porém não desanimada passagem da Dorsal na quarta edição do Monsters Of Rock brasileiro, em 98.

Aqui cabe um parêntese. Como saber exatamente qual é o limite entre ser uma banda “underground” e ser uma banda “mainstream”, ou mesmo vendida? Ao definir o termo “underground”, o autor cita “uma história real de uma banda paulista que acabou antes que gravasse sua primeira fita demo, pois isso seria considerado um ato indigno”. Perto da Dorsal, que gravou ao todo uma demo, um split album e seis álbuns solo (todos independentes) essa banda é, sem dúvida, muito mais “underground”. No entanto, a Dorsal consolidou uma carreira mais sólida, ao passo que, da referida banda, nem se sabe o nome. Da mesma forma, bandas como o Sepultura, com certeza fizeram muito mais concessões ao sistema que a Dorsal, e têm um reconhecimento em todo o mundo, sendo tratado como verdadeiros pop stars. Aqui, é a Dorsal muito mais “underground”.

Não é o caso de tirar o mérito da invejável trajetória da Dorsal, mas se relativizarmos um pouco, a conclusão a que se chega é que a tênue linha que separa a resistência ou a entrega a essa ou aquela tentação está, é claro, na cabeça de cada um e cada banda vai fazendo o que acha certo. Ao público resta prestar atenção e tirar suas próprias conclusões.

Voltando aos méritos de “Guerrilha!”, se engana quem pensa que a narrativa conta simplesmente a história da banda. O autor viaja pela cena rock que existia desde a fundação da Dorsal, até os dias de hoje. Underground ou não, verdadeiro ou não, forte ou fraca, o registro desse livro mostra a existência permanente de uma cena rock com bandas, clubes, rádios e imprensa especializada, muitas vezes invasora de espaços na grande mídia, forçada a registar este ou aquele momento de certa banda. E é nessa cena que Carlos (por mais que negue sua existência) situa o “santo nome da Dorsal”. Mais que a própria cena rock, o pano de fundo é todo um envolvimento político social, suficiente para dar uma situada geral para quem estiver interessado em especular o “porquê” do surgimento desta ou daquela facção musical.

Uma das coisas que surpreenderá o leitor mais desprevenido é certamente, com toda a precariedade reservada as bandas independentes e legitimamente underground, o alcance que a Dorsal atingiu nesses 18 anos de existência. Desde lançamentos devidamente não autorizados, ou ainda autorizados, mas sem o recolhimento dos direitos autorais, até à pirataria generalizada, não se tem hoje a dimensão do quanto, de como, até onde, e de que forma a Dorsal atingiu determinado tipo de público, nos lugares mais distantes do planeta. Sem falar no sem número de artistas que citam a Dorsal como uma das grandes influências, em seus trabalhos. Entre eles, Max Cavalera, que admite ter resolvido montar uma banda depois de ter ouvido “Antes do Fim”, primeiro álbum da Dorsal.

Mas nesse ponto, é necessário lamentar, do ponto de vista do registro histórico, que como biografia oficial, “Guerrilha!” carece de dados e registros, tais como datas e períodos de cada uma das formações que a Dorsal teve, a origem detalhada de cada um dos músicos que já passou pela banda, a relação dos principais shows, as letras de parte das músicas, etc. É um detalhe técnico que engrandece o conhecimento dos fãs, ávidos por esse tipo de registro, além do perfil de sinceridade e de realidade do depoimento do autor, encontrados em abundância. Por outro lado, os capítulos com frases, contos de passagens curiosas da trajetória da banda e com a discografia, além do grande número de fotos, são motivos de irrefutável elogio.

Mas por que Carlos, artista nato, e dono de uma visão da realidade tão própria, optou por um atividade dentro do rock? E porque dentro do heavy metal, um de seus segmentos considerado por muitos como atrasado e primitivo, embora possua os mais apaixonantes e fiéis seguidores? Não foi preciso responder essa pergunta ao longo das quase 140 páginas de “Guerrilha!”. O autor confessa ser fã dos Beatles logo no começo do livro, banda que, como para muitos, também lhe serviu de porta para o fascinante mundo do rock. Mas o potencial de sua inquietude não teria espaço para explodir, não fosse ele mesmo duro, violento, revolucionário e assustador, antes mesmo de ser vanguarda. É certo que o rock brasileiro praticamente não existira até então (me desculpe o xerox jovem guarda e o tropicalismo mutante) e não bastava ajudar da formação de um público e de um mercado rock. Tinha de ser à força, gritado, rasgado, profético. Daí a formação com músicos com singelos nomes: Carlos Vândalo, Cláudio Cro-Magnon e Animal. Daí as letras, o logo, o visual. Se nunca se tinha feito rock no Brasil, que tal a força de um de seus mais barulhentos e emblemáticos segmentos?

Se para os mais maduros “Guerrilha!” soa como uma espécie de saudosismo, para a galera mais nova que faz o rock dos anos 90, certamente é uma lição que deve ser estudada e levada para ser feita e refeita em casa. Uma lição de como é ter dignidade dentro de um mercado viciado. De como é ocupar o seu espaço, colocando em cheque todos os conceitos de ganhar ou perder, de ser grande ou pequeno, pop star ou decadente, in ou out. De resistir dentro de seu próprio estilo, estando ele em moda ou não. “Guerrilha!” vai além das fronteiras do sistema. É o puro retrato do idealismo, nem sempre soterrado.

Tags desse texto: , ,

Comentário

Seja o primeiro a comentar!

Deixe o seu comentário

Seu email não será divulgado