Rock é Rock Mesmo

A inigualável irmandade da misericórdia

Se existe uma banda única em toda a história da música pop, de difícil determinação da origem, e que jamais foi copiada, ela se chama The Sisters Of Mercy.

Meus amigos, o tempo passa, o tempo voa e a produção musical continua numa boa. Toda vez que se enaltece os avanços tecnológicos é porque estão falando de computadores, Internet, celulares, banda larga e que tais. Mas a tecnologia avança na área musical também. Já repararam como um disco dos anos 80, por exemplo, considerado à época bem produzido, escutado hoje parece gravação demo? Acontece a toda hora comigo, não sei se é porque hoje tenho o ouvido mais apurado, ou se é coisa do avanço tecnológico mesmo.

Mas, porém, entretanto, contudo, todavia, não é neste assunto que eu quero tocar hoje. Comecei de tecnologia para chegar a uma coisa que, há mais de vinte anos, continua intacta. Me refiro a Doktor Avalanche, a bateria eletrônica do Sisters Of Mercy. Do show de sábado passado podemos reclamar de tudo, mas perceberam como o som da bateria é exatamente o mesmo daquela época? No show não me dei conta disso, mas como para mim o show em si ainda não terminou, ouvi tudo que eu tinha do Sisters aqui em casa desde domingo, incluindo fitas cassete e VHS, acreditem. Mas a verdade é que nem é esse fato o principal de hoje. O Sisters, sim. Como nem eu estou agüentando mais esse blá blá blá em cima da banda, decidi finalizar com chave de ouro, como diria o Homem Chavão. Ou seja, assim começa, enfim, mais uma Rock é Rock Mesmo.

É sabido que nunca morri de amores pela eletrônica e suas variantes. Costumo dizer, simbolicamente, que meu limite (quando X tende ao infinito) é o New Order e sua “Blue Monday”. Daí um monte de gente não se conformar que eu tenha o Sisters Of Mercy, uma banda cuja bateria é eletrônica, como uma das preferidas da casa. Na maioria das vezes as pessoas se interessam por essa ou aquela banda, de início, mais por conveniência de uma determinada cena musical com aquela que já está familiarizado, ou, também, por empatia. No começo geralmente é assim. Hoje, olhando a história como um todo, há mais de mil maneiras de se dizer que o Sisters é uma banda única, incomparável e inigualável. Tanto que sequer tem imitadores ou seguidores à sua altura, muito embora tenha influenciado toda a geração do gothic metal europeu a partir dos anos 90.

Parece ridículo falar isso, mas o Sisters nasceu não como uma banda, e sim de um conceito artístico bolado pelo genial Andrew Eldritch, em 1980, na industrial Leeds, norte da Inglaterra. Eram ele, Gary Marx, uma guitarra e um amplificador. Para ouvir a música deles nas rádios, fundaram logo de cara uma gravadora, a Merciful Release e gravaram um single com três músicas. Andrew já dizia aos quatro ventos que não havia escutado nada desde 1973 e que sua banda deveria ser algo como uma mistura de Stooges e Suicide. Como tocava bateria muito mal, mesmo desaconselhado pelos amigos por causa de sua voz grave, decidiu ser o vocalista e adotar uma “máquina de fazer som”, como chamavam na época a bateria eletrônica batizada de Doktor Avalanche. Craig Adams entrou no baixo, Ben Gunn numa outra guitarra, e o Sisters já poderia se apresentar ao vivo. Em 81 o grupo teve o segundo single eleito como single da semana pelo NME e os shows começaram espocar, inclusive nos Estados Unidos. Se os jornalistas novidadeiros de hoje se orgulham de dizer que o Strokes já fazia sucesso antes de ter lançado um único álbum, imagine se eles conhecessem o Sisters, que fez história com um caminhão de singles e EPs…

Era o ano de 1984 quando Wayne Hussey entrou no lugar de Gunn e confirmou a formação clássica. Depois veio a assinatura do contrato com a WEA e a gravação do clássico “First And Last And Always”. Desse disco pra trás há um legado de músicas ocultas hoje só encontradas num sem número de gravações piratas que ultrapassam facilmente a barreira das 50 faixas. Quem tem uma das duas coletâneas da banda, “Some Girls Wonder By Mistake” e “A Slight Case Of Overbombing”, ambas lançadas no Brasil, e pensa que ouve tudo que a banda gravou está totalmente enganado. Para isso é preciso dar um mergulho feroz no mundo dos bootlegs importados, e com uma boa grana no bolso.

A fase com Wayne deu de bom o já citado disco de estréia e culminou com o show histórico do dia 18 de junho de 1985, no Royal Albert Hall, de onde saiu o vídeo “Wake”, raríssimo e jamais lançado em DVD. Dali a banda se separou e voltou a se apresentar ao vivo em 1990, portanto, cinco anos depois. Nesse ínterim, Wayne Hussey deixou a banda com Craig Adams e ambos começaram a se apresentar e a gravar demos usando o nome do Sisters, ou, eventualmente, derivados como Sisterhood, por exemplo. A coisa toda foi parar na justiça, mas só se resolveu quanto o esperto Eldritch lançou, por conta própria, e de forma independente, em 1986, o álbum “Gift”, sob nome The Sisterhood, com músicos que ele pretendia que o acompanhasse dali em diante. O single desse disco, “Giving Ground”, derrubou toda a parada britânica da época, como trabalho solo de Eldritch, e Wayne teve que partir pra outra. Chamou sua banda de The Mission e fez também sucesso com ela.

Em 1987 chegou “Floodland”, um disco em que a formação era um duo: Andrew e Patrícia Morrison. Poucas guitarras e muitos teclado. Músicas épicas. A segunda geração da banda parecia mistura a primeira com o Sisterhood, e emplacou sucessos de novo. 1990 foi o ano de “Vision Thing”, disco que flertou com o hard rock e trazia, de novo, formação de banda, com o baixista do Sigue Sigue Sputnik, Tony James e o guitarrista do All About Eve, Tim Bricheno, além do novato Andreas Bruhn também na guitarra. No Brasil, neste ano, eles fizeram cinco shows, um em Brasília, que Eldritch chamou de “cidade chata” e mais quatro no Rio e em São Paulo, dois em cada capital. Dali em diante a banda passou a se exibir com formações diversas – a lista de shows é gigante, mas está inteirinha no site da banda - sempre capitaneadas por Andrew Eldritch e Doktor Avalanche, e parece que só agora pretende lançar um álbum de inéditas, dada a quantidade de músicas novas apresentadas no show de sábado.

O fato é que fiquei contando história de banda como um colunista qualquer e não expliquei o porquê de o Sisters Of Mercy ser uma das preferidas da casa. Mas não vou correr, não. Explico já. Agora. Primeiro porque, como dizem, toda banda genial deve ter, ao menos, um gênio, e temos aqui Andrew como o verdadeiro mago dos anos 80. Segundo que a fusão casual de uma bateria eletrônica cujo grande mérito é se parecer com a acústica, com uma voz de barítono deveras peculiar transformou a banda numa coisa única em todo o universo da música pop em todos os tempos. Pense numa banda parecida com o Sisters Of Mercy e você vai descobrir que não existe uma sequer. Embora tenha exercido influência em várias gerações, jamais banda alguma se assemelhou ao estilo único, ímpar, do Sisters Of Mercy. De outro lado, que grupos ou artistas exerceram influência no Sisters? Se era difícil descobrir na época, impossível agora. Definitivamente estamos diante de uma das poucas bandas que podemos chamar de original sem riscos.

E, entrando em detalhes de cada fase, a inicial, com as guitarras semiminimalistas fazendo evoluções e até solando ao fundo garantiam uma especificidade ainda maior. Junta-se a isso as letras raras e de conteúdo implícito; uma preocupação estética que incluía desde o visual de palco, fumaças, couros, longas madeixas (em plena era do pós punk de cabelo arrepiado e desgrenhado), roupas dos músicos; passando pela cuidados com a arte das capas dos discos e até às capas dos discos piratas… Tudo apontava para uma arte diferenciada, no chamado conjunto da obra. Tudo, claro, obra do Mago. Passando para a fase sem guitarras, ainda assim Andrew foi inovador, fazendo músicas sem igual até hoje, como as épicas e imbatíveis “This Corrosion” e “Dominion”, só para ficarmos com duas. Até na época do “Vision Thing”, com o flerte com o metal que tanto a banda influenciou é notório o dedo de Andrew, sempre preocupado em fazer algo verdadeiramente de vanguarda.

Portanto, meus amigos, não há como escapar, pelo conjunto da obra, do legado da irmandade da misericórdia. Não é empatia, não. Não é moda. Não é fase. Não é conveniência. É, repito, música de qualidade, inigualável, criativa e de vanguarda.

Até a próxima, e long live rock’n’roll!!!

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