Fazendo História

Rock’n’roll will never die

Na noite principal do Free Jazz, Jeff Beck não teve dúvidas em despachar sua guitarra cruelmente contra o chão, sob olhares desconfiados de uma platéia comportada. Publicado na edição número 17 da Rock Press, de dezembro de 1998. Foto: Marcos Bragatto.

jeffbeckO que aconteceu naquela noite no Free Jazz foi uma manifestação explícita do mais puro rock’n’roll. Baixou em Jeff Beck o espírito que já há muito tempo vem assolando as almas alheias, e o veterano guitarrista, que, é bom que se lembre, fez fama por criar o fusion, mistura de rock e jazz, encarnou o verdadeiro espírito do rock’n’roll.

Em que outras circunstâncias essa manifestação de rebeldia própria, intrínseca à rica história do filho rebelde de todas as sociedades poderia acontecer? Tinha de ser ali. Um festival elitista para uma música degustada por poucos, marcado pelos seus caríssimos ingressos, mimado por toda a imprensa dita especializada, e bajulado pela decadente classe média acostumada a votar na direita para não perder um quarto de seu apartamento de zona sul. Um festival com um público de idade avançada, de pequenos empresários, empregados de alto escalão de grandes empresas, ou, de gente que se beneficia, de alguma forma, da famigerada divisão social do trabalho.

Para esse público, pouco importava o preço do ingresso (muitos deles utilizaram seus contatos para adquirir um), da cerveja, do whisky, dos serviços. Para muitos, pouco importava a presença do próprio Jeff Beck, pois já estavam no Free Jazz, na noite principal, no Main Stage. Essas pessoas não tinham a idéia do que estava para acontecer, pois uma certa tranqüilidade, típica do status quo, pairava no ar. Jeff Beck também não sabia o que esperar, ainda que tivesse feito uma primeira apresentação lotada ao entardecer. Mesmo eu, que como poucos, tive o privilégio de vivenciar as duas experiências, também não sabia o que iria encontrar sob aquela cabana tão chique e tão bem freqüentada.

Do lado de fora, no Village, que recebeu de uns colegas o criativo nome de “baixo jazz”, estavam os excluídos. Aqueles que não faziam parte da casta que podia passar pelas roletas e ganhar uma pulseirinha de plástico. Ou ainda muitos que não sabiam sequer o que se passava sob aquela tenda, mas que não poderiam perder a chance de estar “in”. “In”, nesse caso, era estar do lado de fora, no “Off-jazz”. Daria até para ouvir o som do show, dali mesmo, não fossem estes mais barulhentos que o próprio sistema de som do Main Stage.

O show principal, aquele que fechou a edição carioca, na noite de sábado, teve mais glamour que o da tarde, teve luzes, teve efeitos, encontrou uma banda mais segura. Jeff Beck é o senhor da situação. Veste uma camiseta justa e um jeans surrado, a mesma roupa da tarde. Já faz algum tempo que ele prefere se entreter com mecânica de automóveis às suas guitarras. É sabido que anda sempre com as mãos sujas de graxa, e por isso o chamam de “Jeff unhas azuis”. Mas Jeff Beck sabe como tratar uma guitarra, tirar dela todas as suas intimidades, seus anseios e segredos. Ele sabe levantar uma guitarra nos braços e empunhá-la como só quem sem permite o rock’n’roll faz. Não, em condições normais ele jamais faria mal a uma guitarra. Mas aquela noite lhe reservara algo que não respeita os limites da normalidade.

O rock’n’roll sempre foi a bandeira de luta em todas as tribos e lugares. Sempre esteve do lado das revoluções, dos ideais, da liberdade de expressão, na vanguarda dos acontecimentos, enfim. Onde houver inquietação, ali o rock se faz presente, questionando, alternando, incomodando. Que outro estilo, dentro da música, conseguiu catalisar para si tanta energia, tanta rebeldia e tanto clamor por transformações como o próprio rock? Que outro movimento cultural poderia estar tão presente na vida dos adolescentes em todas as épocas e lugares, a ponto de modificar o comportamento de gerações inteiras? Que outra manifestação de energia poderia se apossar do espírito de Jeff Beck naquela fatídica noite, pra chocar a grande família reunida, senão o próprio rock’n’roll?

Era o início do bis, todos já estavam mais ou menos conformados com o resultado da peleja. A banda estava de volta, e tal qual fez no show da tarde, Jeff se preparava para tocar “Where Were You”. Não conseguiu, teve problemas ao afinar as cordas de sua guitarra. Um roadie lhe ofereceu outra. Em vão. Possesso, Mr. Jeff Beck encarnou-se do mal e lançou sua guitarra contra o piso, partindo-lhe o braço em dois pedaços, que ficaram pendurados pelas seis desafinadas cordas. Saiu e depois voltou, como se nada tivesse acontecido, para tocar mais uma. Estava aliviado.

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