Rock é Rock Mesmo

A estética escatológica de Rogério Skylab

A serviço da estética escatológica, Rogério Skylab recria clichês da música popular, resultando num trabalho diferenciado. Irremediavelmente fora do mercado, ele continua jogando seus dados. Publicado originalmente no Dynamite on line.

Em maio de 1986 eu estava em frente ao grande palco montado no Jóquei Clube de Juiz de Fora, participando da terceira edição do Festival de Rock daquela cidade. Vi passar por lá, só nessa edição, verdadeiros expoentes do rock nacional dos anos 80, entre eles Capital Inicial, Cólera, Dorsal Atlântica, Robertinho de Recife e Metalmania, Detrito Federal e por aí vai. Mas me lembro muito bem de um sujeito branquelo que à frente da banda Setembro Negro repetia diversas vezes algo como: “Vontade de fuder! Vontade de cagar!”. Naquele cenário, só me restava ir para uma das barracas beber mais uma cachaça, com o intuito de aplacar o frio que chegava até os ossos de um carioca mal acostumado às baixas temperaturas do interior de Minas.

Muito tempo se passou até que o nome daquele vocalista retornou ao cenário da música brasileira. Era Rogério Skylab, e pude confirmar isso há pouco mais de um ano, quando, após o lançamento de “Skylab III”, vi que estava lá a música “Segunda-feira”, que contém os versos indigestos que não saíram da minha cabeça. Ao entrevistar Skylab, ele próprio confirmou, ainda que um pouco sem jeito, sua passagem pela referida banda.

Nos últimos tempos Skylab tem trabalhado bastante, não só como bancário, mas ele acaba de lançar “Skylab IV”, conquistando mais e mais admiradores de seu trabalho, deveras próprio e, como ele costuma dizer, “autoral”. Entre eles está Jô Soares, que, se consegue fazer um programa de entrevistas sem perguntar nada de interessante aos convidados, ao menos (e de quando em vez) abre espaço para pessoas “irremediavelmente fora do mercado”, como outra letra de Skylab diz. O Gordo, engraçado, mas jornalisticamente preguiçoso, desta última vez abriu um espaço de mais de dois blocos de seu programa para Skylab, que cantou trechos de músicas, “declamou” a genial “Puta”, e procurou atender às curiosidades do apresentador, sempre utilizando a máxima “respostas diferentes nada a ver para confundir mais que esclarecer”, no mais puro estilo Velho Guerreiro.

Jô pode até ser o mais famoso, mas não é o único. Não são tantos assim também os que se dispõem a ouvir músicas que investem na escatologia, ainda mais com altas doses de sarcasmo e inteligência. Porque, sim, é preciso pensar e ter um certo cabedal para entender aonde Skylab que chegar. Ou não, às vezes basta só rir da forma pessoalíssima com a qual ele interpreta cada palavra das poesias que escreve e ser feliz. Porque além do próprio Skylab ser uma figuraça, seu trabalho, de um lado, pode ser até simplório - e aí não é preciso usar muitos neurônios para se divertir, mas, de outro, tem a profundidade da alma do mais idiota dos seres humanos, e, aí, sim, não é para qualquer um.

Embora lance CDs, Skylab navega num universo muito distante da música propriamente dita, tanto que é difícil tentar encaixá-lo em qualquer segmento da música pop ou mpb (o que é um bom sinal para um artista que se propõe original), e está no universo das idéias a chave para entender seu trabalho, como ele próprio reportou certa vez a este repórter. Essas idéias estão nas letras que ele desenvolve, criando, em todos os seus quatro discos, crônicas de um cotidiano que não se importa em narrar os procedimentos nada higiênicos do funcionário de uma carrocinha de cachorro quente, os efeitos intestinais de uma empada estragada, ou a descoberta, durante uma sessão de sexo oral, que a namorada tem vitiligo.

Falando assim, com a polidez que o bom jornalismo exige, isso tudo não tem a menor graça. Mas cantado (ou às vezes narrado) por Skylab, onde a música é apenas um acessório, é que o conceito de autoral, embora não adequado em sua totalidade, vem à tona. O alívio do próprio artista (a maioria de suas letras são em primeira pessoa), a raiva com o dono do botequim que não supriu a privada de papel higiênico, a crítica a quem precisa colocar um parafuso na cabeça ao invés de um piercing na orelha ou silicone no peito - tudo isso não valeria nada se fosse apenas escrito num papel, mas ganha ares dramáticos ao serem interpretados por Skylab. Assim, a serviço dessas idéias, geniais para uns e asquerosas para outros, ele recria clichês da mpb, do pop rock, hardcore, samba, blues, bossa nova, da marchinha carnavalesca e o escambau, escoltado por bons músicos, como numa típica banda de apoio.

Mesmo distinto da grande maioria de artistas dentro da mpb, Skylab tem sua turma e a conhece muito bem, tanto que, segundo ele próprio, “Skylab III”, por exemplo, foi feito em homenagem a fracassados e “foras da mídia” em geral, como Daminhão Experiença, Leonel Brizola, Arrigo Barnabé e até Caetano Veloso, que para ele malogrou ao abandonar as experimentações do álbum “Araçá Azul”, para se dedicar a uma carreira vitoriosa dentro da mpb. Já em Skylab IV, ele passa uma música inteira questionando quem exilou do mercado outros malditos como Walter Franco, Jards Macalé, Fausto Fawcett e até o sabido Lobão, entre outros.

Se engana, entretanto, quem acha que Rogério Skylab é ingênuo e que seu trabalho significa um eterno desencontro dentro da música brasileira. Diferentemente disso, ele sabe muito bem o que quer. Não é à toa que se aproveita do apreço de Jô Soares e do espaço que a mídia lhe abre, mesmo que, muitas vezes ela o trate como um artista bizarro. Nesses momentos, ele desanda a criticar unanimidades criadas pela própria mídia, reivindicar a ruptura da mpb, como nos velhos tempos, e ainda espinafrar as novas bandas do rock, que, segundo ele, se moldam às fórmulas do mercado em busca o sucesso. Porque para ele, este talvez seja a grande mácula que as sucessivas gerações do mundo pós-Caras carrega. O que não quer dizer que ele não queira chegar lá, muito embora costuma declarar, aos quatro ventos, que sua música jamais tocará no rádio. Firme na sua estética escatológica, ou, orgânica, com queiram, Skylab vai, como ele mesmo diz, “jogando os dados”, com a genialidade de um técnico de futebol, que passa de besta a bestial numa fração de segundos, como diria o afamado Elba de Pádua Lima, o Tim. Se difícil mesmo é depender da sorte em jogos de azar, que venha o Skylab V e todos os seus subseqüentes, porque, mais do que nunca, é preciso fugir do óbvio.

Até a próxima, e long live rock’n'roll!!!

Tags desse texto:

Comentário

Seja o primeiro a comentar!

Deixe o seu comentário

Seu email não será divulgado